Diários da pandemia ou notas perdidas nas páginas ociosas de uma velha agenda
(Julho, 2022)Publiquei em 2012 SALVADOR ABAIXO DE ZERO, um volume de breves contos sobre uma soterópolis suja, insalubre, nada solar, que não aparece no cartão-postal. Certamente, o trabalho que mais gostei de realizar, além de ter alcançado um resultado autoral satisfatório e com inesperada repercussão, simultaneamente me afastava daquela roupa de poeta que nunca me coube muito bem. Entusiasmado, decidi produzir contos de maior fôlego apresentando protagonistas absolutamente escrotos que, feito Marco Aurélio em “Vale Tudo”, escapavam impunes na conclusão. Eram agentes do antigo DOPS inconformados com os rumos do país, carlistas saudosos de um verão mais truculento, xenófobos, homofóbicos, conservadores hipócritas, neonazistas, feminicidas, milicianos, corruptores, entre outros elementos repulsivos. Apesar da temática, tudo era abordado com bastante humor ácido, crítico; parecia ser, naquele momento, uma continuação natural da obra anterior e não um prenúncio de tempos sombrios. A cada revisão e reorganização da ordem dos textos o conjunto ganhava um novo título, “EU NÃO SOU UM BOM LUGAR”, um empréstimo de uma canção dos Titãs, fora o que mais resistiu às impressões e encadernações na papelaria, sendo, inclusive, finalista de alguns prêmios literários – o que me iludiu ao ponto de esperar por “uma oportunidade melhor” de publicação, com isso fui protelando e consequentemente perdendo o trem da história. Na época, o cidadão que seria eleito democraticamente presidente em 2018 através do sistema de urnas eletrônicas não era alguém a ser levado a sério e os personagens nocivos do livro, para mim, eram apenas caricaturas, uma fotografia desbotada de um mundo que eu acreditava não existir mais. Quanta ingenuidade. Inicialmente o que era divertido foi no decorrer dos anos se tornando indigesto, talvez tenha sido melhor, realmente, não ter sido publicado, sabe lá como ele seria entendido na atualidade, se adequando conforme a narrativa mais conveniente, o que me obrigaria a sempre me justificar e justificar a obra. Enfim, taí um inédito na gaveta que não desejaria ver nas prateleiras, mesmo que aqueles vermes retratados retornem para as trevas algum dia.