quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

FICÇÃO CIENTÍFICA

VIAGEM À LUA, 1902, Georges Méliès
Possuo dezenas de teorias estapafúrdias, que apenas eu pareço disposto a acreditar. Acredito, por exemplo, que o teletransporte, recurso tão comum em produções de ficção científica, como a série "Star Wars", salvaria a humanidade de um inevitável colapso emocional. Principalmente no cada vez mais confuso final do ano. Com o teletransporte não desperdiçaríamos nosso precioso tempo, não existiria atrasos, frustrações. Teríamos uma melhor qualidade de vida, viver valeria realmente à pena. Com o teletransporte teríamos o fim dos congestionamentos e acidentes na estrada, o fim do caos aéreo, o fim da espera, o fim da saudade (uma mãe em Feira de Santana poderia dar um beijo de boa noite em sua filha em Tóquio e voltar à Bahia antes do almoço).
        Mas acho que estou vendo muitos filmes...
    Ficção científica talvez seja o único gênero cinematográfico que não se encerra completamente ao final da sessão. Um bom exemplar deixa saudáveis arestas, que propiciam discussões e interpretações. Sempre tive o desejo de participar, ou fundar, um clube de ficção científica, onde os sócios poderiam rever “Blade Runner”, “Os 12 Macacos”, “2001”, entre outros. Por enquanto, isso é mais fácil de ser resolvido do que a criação do teletransporte, infelizmente.
          Então, que venha 2012! 
          Os aeroportos me aguardam!

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

MAIS LISTAS?

        Questionado por que nunca faço listas de livros ou séries de TV, a resposta não poderia ser mais evidente: não leio livros recém-lançados (os mais recentes que li foram  “Em Alguma Parte Alguma” de Ferreira Gullar e "Só Garotos" de Patti Smith), acho que uma única existência não será suficiente para ler e reler todos os clássicos que desejo. E não acompanho séries de TV, também acredito que não conseguirei ver todos os filmes que pretendo e dois episódios de qualquer série, ou dois capítulos de uma novela, equivalem a um longa-metragem, aproximadamente - além do meu televisor só conhecer noticiário, eventos esportivos e reprises de “Chaves” e “Todo Mundo Odeia o Chris”.
         Tenho outras listas, mas estas, como já disse anteriormente, ainda são impublicáveis.

*Na imagem, John Cusack em “Alta Fidelidade”, 
interpretando o maníaco em listas Rob Gordon. 

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

CARNAVAL FUTEBOL E POESIA

Adeus, Doutor
     Costuma-se dizer que no Brasil o ano começa somente depois do carnaval, para mim ele termina com o fim do Campeonato Brasileiro de Futebol. Sei que essa afirmação soa tão leviana quanto dizer que só após a folia momesca a vida encontra seu trâmite normal (quem já está escalado para bater o seu cartão de ponto em primeiro de janeiro que o diga).
      Para quem viu seu time do coração lutar o certame inteiro contra o rebaixamento, talvez não haja muito o que comemorar, embora sempre exista a expectativa de dias melhores, até para quem espera alguma mágica acontecer num mero espocar de um espumante numa praia lotada na noite de 31 de dezembro.     
     Gosto tanto de futebol quanto de poesia, para a incompreensão de muitos. Gosto da poesia das palavras, da embriaguez dos versos inusitados, os versos que gritam e pedem socorro, os versos que silenciam, entretanto me fascina muito mais a poesia das ruas, a poesia dos andaimes, a poesia das flâmulas. 
        Gosto da poesia de Drummond, mas prefiro a poesia de um Sócrates em campo.
        Infelizmente, amanhã não haverá a infinidade de reprises dos gols da rodada, não haverá mesa redonda, discussões em mesa de bar. A partir de amanhã os noticiários esportivos irão se abastecer de retrospectivas, gols internacionais e especulações sobre os bastidores da bola. A partir de amanhã os domingos serão simplesmente domingos, sem graça, sem vibração, sem  compromissos. Nesse instante, deve ter alguém repetindo aliviadamente: até que enfim – o mesmo que eu direi na quarta-feira de cinzas, quando Salvador voltar a ser dos soteropolitanos.

        Por enquanto, sou apenas saudade.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

NATALIE WOOD

De estrela mirim à namoradinha da América, Natalie Wood participou de eternos clássicos do cinema, “De Ilusão Também se Vive”, “Juventude Transviada”, “Rastros de Ódio”, “Clamor do Sexo” e “Amor, Sublime Amor” são alguns deles. Há exatamente trinta anos, no dia 29 de novembro de 1981, ela abandonava essa existência, em circunstâncias misteriosas, enquanto navegava em um iate na companhia do marido Robert Wagner e do “amigo” Christopher Walken. Dona de uma beleza natural, e que ainda me encanta, Natalie Wood não é tão cultuada, como outras atrizes de sua geração, mas, certamente, possui um lugar importante na história do cinema. Merece a lembrança.
 




sábado, 26 de novembro de 2011

CALUDA, TAMBORINS!


          Para Jorge Bóris 

          Pegando carona num inusitado interesse da mídia pelo centenário do compositor e ator Mário Lago, e fugindo das onipresentes Amélias e Auroras, segue uma marchinha que ironizava a criação da Academia Brasileira de Música Popular, em 1941, intitulada "Caluda, Tamborins! ou de como o biltre do demo enredou em sua parlanda a trêfega Natércia" (traduzindo: "Silêncio, Tamborins! Ou como foi que o infame do diabo envolveu a alegria [de] Natércia no seu blá blá blá"), com uma  letra hermética que contrapunha o simplismo do gênero, mas essa, provavelmente, não passará em nenhum especial da TV.

Caluda, tamborins, caluda! Um biltre meu amor arrebatou.
No paroxismo da paixão ignota/ Supu-la um querubim, não era assim.
Caluda, tamborins, caluda... Soai plangentemente, ai de mim.
Vimo-nos num ror de gente /E, sub-repticiamente,
O olhar seu me dardejou.
Cáspite, por suas nédias madeixas/ Que suaves endechas
Em pré-delíquio o pobre peito meu trinou.
Fomo-nos de plaga em plaga, /Pedi-lhe a mão catita,
Em ais de êxtase m'a deu.
E o dealbar de um amor/ Em sua pulcra mirada resplandeceu, olarila!
Férula, ignara sorte/ Solerte a garra adunca
Em minha vida estendeu! Trêfaga ia a minha natércia,
Surge o biltre do demo/ Rendida à sua parlanda, ela se escafedeu.
Vórtice no imo trago.
São gritos avernais que no atro ódio exclamei.
Falena sou, desalada...
Ó numes ouvi-me: aqui del-rey!

domingo, 20 de novembro de 2011

MEU PÉ ESQUERDO

        O soteropolitano, e quem visitou Salvador recentemente, sabe que a capital baiana está abandonada, diferente da sua alegria folclórica no colorido do cartão-postal.
        Vivendo no centro dessa cidade há oito anos, não muito distante do que será a “nova Fonte Nova”, sequer me proponho imaginar como esse lugar sediará os jogos da Copa do Mundo de Futebol (nem todos os tapetes do planeta seriam suficientes para esconder tanta sujeira, nem toda maquiagem conseguiria disfarçar tanto descaso).
        Ao caminhar por suas históricas ruas, suas ladeiras, desviando-me habilmente dos vendedores ambulantes que ocupam todos os espaços, não tive a mesma habilidade para escapar dos buracos na calçada, que já fazem parte da paisagem, e, inevitavelmente, meu pé esquerdo sucumbiu pateticamente no meio da via, promovendo uma virada forçada do tornozelo. Resultado: os ligamentos rompidos e condenado a ficar “preso” dentro de casa, minha prisão sem grades, sabe-se lá por quantos dias, deslocando-me com o auxílio de muletas, com os movimentos reduzidos que transformam o simples em complexo, o corriqueiro em estafante, e digladiando contra o tédio (entre tantos insucessos, a angústia que senti ao utilizar uma cadeira de rodas no hospital foi uma das piores desta minha parca existência).
        Mas que Salvador acolha em 2012 um novo governante, que não se afogue no pouco caso e nas promessas demagógicas.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

POEMA INÉDITO VII

estou no meu próprio centro
entre minhas próprias margens

nem sempre me perco
nem sempre me acho

em cada estação sou uma nova cidade

Herculano Neto

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

PORQUE NÃO TENHO TELEFONE MÓVEL

Inicialmente, foi um pouco difícil me adaptar: se eu queria saber as horas, tateava o bolso em busca do aparelho; se estava atrasado afligia-me não poder avisar no trabalho que chegaria mais tarde; se me diziam um endereço, a data de algum compromisso, nunca tinha onde anotar – afinal, caneta e papel são utensílios do século passado. Mas, pouco a pouco, fui aprendendo a existir sem ele e consequentemente minha qualidade de vida a aumentar surpreendentemente (tenho medo de calcular quanto tempo desperdicei sendo escravo daquela caixinha). Meus amigos e familiares não entendiam minha decisão, argumentavam que tentavam se comunicar comigo e não conseguiam, que não se pode viver sem telefone celular nos dias de hoje, etc. Até me presentearam com um desses modelos de penúltima geração, cheio de softwares desnecessários, no entanto jamais o tirei da embalagem. 
          Não demorou para que as outras pessoas, também, estranhassem o fato de eu não possuir um celular: “como assim, você não tem?!”, parecia que eu estava dizendo que eu não tinha alma. Definitivamente, não me fazia falta nenhuma aquele troço. Agora, não tinha que dar satisfação por que não atendi alguma ligação ou por que o telefone estava desligado. Não era interrompido nos momentos mais inoportunos. Não incomodava ninguém com o meu gosto musical duvidoso. Não assustava minha sobrinha com o meu ringtone macabro. Não era obrigado a compartilhar minhas conversas quando eu estivesse em locais públicos. Não sofria com a ausência de sinal, falta de crédito nem bateria descarregando. A melhor parte, e olha que é difícil decidir qual é a melhor parte, era não ter que prestar contas de cada passo meu e ainda ter que tolerar a deseducação alheia, que já liga perguntando onde você está, tornando dispensável um mero cumprimento. Estava livre e com dó daqueles que passavam por mim digitando mensagens, ouvindo músicas, assistindo aos seus vídeos, papeando banalidades, conectadas na rede mundial e desligadas do mundo ao seu redor – mais solitárias que um grão de areia numa lata de Leite Ninho. 
          Mas não pensem que eu sou um desses alarmistas ecologicamente corretos, que afirmam que telefone celular é cancerígeno e que se ele pode causar interferência em eletrodomésticos coisa muito pior pode provocar no nosso organismo. Não acredito, por exemplo, que o uso do telefone móvel será proibido em muitos lugares, com restrições semelhantes às que acometem os fumantes, e que haverá severas advertências do Ministério da Saúde e áreas específicas para a sua utilização (o que me permitiria dizer, sem estranhamentos, algo como “há cinco anos que não tenho celular”, como quem diz com orgulho o tempo que tem longe da bebida alcoólica). Não acredito que existirá clínicas para reabilitar os seus dependentes e que o tema será considerado de extrema prioridade pelos governos, inclusive sendo a base dos debates e promessas de campanha eleitoral. Não acredito que a interatividade alcançará níveis cinematográficos, com telefones inteligentes, com vontade própria, que um dia poderão se rebelar contra a humanidade. Não acredito que arma de fogo será um dos seus diversos aplicativos de segurança. Não acredito que tudo que falamos nele será registrado em um enorme banco de dados gerido pelas potências mundiais, em parceria com as grandes corporações, onde serão arquivadas todas as nossas movimentações e preferências  – nem acredito que o cruzamento dessas informações ajudará a definir a estratégia de mercado para  determinados produtos, além de prevenir crimes, numa sociedade claramente inspirada em “Minority Report”. Não acredito que seremos conhecidos apenas por números, e que receberemos esse número ao nascermos, em hospitais e maternidades comandados pelas operadoras de telefonia.
          Não acredito em quase nada disso.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

MEUS FILMES PREFERIDOS (DOS MEUS CINEASTAS PREFERIDOS)

PEDRO ALMODÓVAR
Havia uma época, não muito distante, que citar Almodóvar era lugar-comum (talvez ainda seja), simbolizava um incontestável nível cultural, era atestado de bom gosto e sofisticação,  mesmo que, em certos casos, não ultrapassasse a superfície  de pessoas que queriam soar “descoladas”, “antenadas”, mas claramente desconheciam a filmografia do pop diretor espanhol. Durante algum tempo, então, legal era afirmar que odiava Almodóvar, feito o Smurf Ranzinza. Para evitar polêmicas, ou não ser confundido com a maioria, preferia não manifestar minha admiração – ficando essa informação restrita a um diminuto grupo de amigos. Agora, provavelmente, entusiasmado com A Pele que Habito, que mesmo não sendo tão bom quanto os filmes listados abaixo, consegue, ao menos, ser o seu trabalho mais interessante em quase dez anos (já que a sua melhor película nesse período pertence a Woody Allen).


MAUS HÁBITOS (Entre Tinieblas, 1983)
Após presenciar a morte do namorado, vitimado por uma overdose de heroína, uma jovem cantora de bolero, Yolanda Bell, busca refúgio no convento das “Redentoras Humilhadas”, onde a madre superiora é sua admiradora. O convento abriga ex-pecadoras que não abandonaram seus maus hábitos: Irmã Perdida (que cuida de “Bebê”, um tigre que vive no jardim), Irmã Víbora, Irmã Sórdida e Irmã Rata de Esgoto (que escreve romances pornôs sob pseudônimo). A madre superiora tenta superar a crise financeira do convento, e sua paixão não correspondida por Yolanda, traficando drogas da Tailândia. Não faltam humor negro e críticas a religião e a sociedade espanhola contemporânea.

QUE FIZ EU PARA MERECER ISTO?  (¿Qué he hecho yo para merecer esto!!, 1984)
Para equilibrar o orçamento familiar, Gloria (Carmen Maura) é obrigada a trabalhar dezoito horas diariamente, se mantendo acordada com o auxílio de anfetaminas. Vivendo em um pequeno apartamento, num conjunto de prédios deteriorados da periferia de Madri, com seu marido infiel apaixonado por uma cantora alemã, a sogra sovina que tem um lagarto de estimação chamado “Dinheiro”, um filho traficante e o caçula homossexual que se prostitui (uma garota de programa, um policial impotente e uma criança paranormal completam o quadro de personagens excêntricos, mas extremamente humanos), ela encontrará apenas desalento, nessa trágica comédia da vida privada. 



A FLOR DO MEU SEGREDO (La Flor de mi secreto, 1995)
Leo Macias é uma romancista frustrada (Marisa Paredes em um dos melhores momentos de sua carreira), que obtém sucesso com romances adocicados, assinados ironicamente com o pseudônimo Amanda Gris. Em crise conjugal, ela se sente incapaz de continuar a produzir o tipo de literatura que sempre fez, passando a beber constantemente. Escapando das comédias absurdas e multicoloridas, Almodóvar inicia aqui o amadurecimento de sua obra, com temas mais sóbrios, tons mais escuros e o ritmo menos frenético. Curiosamente, o romance “Câmara Frigorífica”, citado na película, é uma espécie de protótipo do que seria “Volver”. O filme traz ainda Caetano Veloso interpretando “Tonada de Luna Llena”.



TUDO SOBRE MINHA MÃE (Todo sobre mi madre, 1999)
O maior êxito na carreira de Almodóvar (premiado como melhor diretor em Cannes, além de levar a estatueta do Oscar de melhor filme estrangeiro), narra a trajetória de Manuela (Cecilia Roth), que após doar os órgãos do filho, atropelado no dia do seu aniversário quando tentava ganhar um autógrafo da atriz Huma Rojo (Marisa Paredes), resolve retornar à Barcelona para reencontrar o pai do seu filho. No caminho, se depara com o travesti Agrado e uma jovem freira grávida e soropositiva, Rosa (Penélope Cruz). Repleto de referências, de “Um Bonde Chamado Desejo” a “Bette Davis, esse melodrama, onde a identidade sexual é bastante abordada, é, praticamente, uma unanimidade.



FALE COM ELA (Hable con Ella, 2002)
Benigno Martin (Javier Cámara) é o enfermeiro responsável por Alicia, uma bailarina que entrou em coma após uma acidente de carro. Benigno dispensa a ela excessivos cuidados, falando com Alicia o tempo inteiro, acreditando que ela possa ouvir. Na clínica onde trabalha, ele conhece Marco Zuluaga, um jornalista que acompanha a famosa toureira Lydia Gonzalez, também enferma. Os muitos flashbacks contará a história dessas mulheres.  Almodóvar, que sempre se caracterizou por uma filmografia excessivamente feminina, aqui presta uma especial atenção ao universo masculino. Mais um Oscar, desta vez por roteiro original. Caetano Veloso participa cantando “Cucurrucucu Paloma”  ("Este Caetano me há puesto los pelos de punta").




terça-feira, 1 de novembro de 2011

NO LAPA/BARRA

— Vai ter a gravação de um programa de axé no colégio.
— Tô sabendo, mas só poderão participar os alunos que têm as melhores notas.
— Muito injusto isso, nada a ver.
— Por que? Suas notas estão ruins?
— Também, mas a injustiça é que os alunos com as melhores notas não gostam de axé.



* Flashes cotidianos que não me incomodam, durante minhas viagens de buzu, afinal, nunca se sabe quando um Hitchcock poderá sentar-se ao seu lado;
** Na imagem, célebre aparição do diretor Alfred Hitchcok em “Ladrão de Casaca” (To Catch a Thief, 1955), ao lado do astro Cary Grant;
*** Buzu = Ônibus

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

UM DIA PERFEITO

Casa da Fernanda, 11:15 da manhã
 
        As crianças passam correndo por mim, em mais uma de suas inventivas brincadeiras. Quando eu era criança, costumava inventar muitas, mas não saía correndo por aí, somente inventava. Sentado na varanda, o sol já começa a alcançar minhas pernas brancas, logo terei que entrar. Marianne, Natália e Leila me fazem companhia, elas são discretas e não tocam no assunto, apenas falam bobagens sobre os homens que tentam sem sucesso acender a churrasqueira no jardim -, e riem bastante, até  parece ensaiado.
        O cachorro-quente na casa da Fê já é quase uma tradição, há muita gente que eu não conheço, fazia tempo que eu não vinha. Admito que eu precisava respirar um pouco, encontrar pessoas normais, com vidas normais e rotinas normais. Todos estão tão alegres e para mim tudo é tão estranho. Definitivamente, a alegria não me é familiar. Sei que às vezes sou cínico, defensivo, mas só por hoje me resguardarei no meu silêncio e na evasividade dos meus óculos escuros. Numa velha canção, Jorge Ben descobre que é um anjo. Eu não quero descobrir, de repente, que também sou um; só queria ter asas e poder voar para bem longe, mas não é possível. Nem morrer para mim é possível. Já morri mais de vinte e nove vezes e no dia seguinte sempre acordei na minha cama. A diferença é que ontem, depois que eu tentei jogar fora minha vida inteira, acordei numa cama de hospital.

Casa da Noélia, 31 horas e meia atrás

         Maurício põe John Coltrane pra rolar na vitrola. Escuto os primeiros chiados provocados pela agulha no vinil e me deleito numa espécie de transe. Meus movimentos parecem em câmera lenta. A luz cinza ajuda a criar o clima. A sala está cheia, mas só enxergo Maurício se aproximando. Ele me beija e com a ajuda da língua coloca em minha boca um comprimido. Mentir é muito fácil e Maurício faz isso muito bem. Prometo que acreditarei em suas mentiras esta noite -, ele sorri sem exibir os dentes. No bolso, encontro uma fotografia 3x4, mas não a saudade mais bonita. Deixo a foto ser pisoteada pelo chão. Em seguida, me entrego ao álcool e às bocas que me procuram, como se não houvesse outro dia, sem pensar . 

        Minha sede não tem fim. 
        Um cara abre uma mala sobre a mesa com drogas demais e é muito festejado. Maurício toma a frente e diz para começarem por mim, ninguém se opõe. O cara prepara calmamente uma seringa, com a precisão de um verdadeiro especialista, depois procura um local em mim para poder injetar, mas não há mais lugar para as agulhas entrarem. Sem perder a calma, ele aperta meu braço violentamente, ao perceber um vestígio de veia surgir, não desperdiça a oportunidade. Não sei o que há de errado comigo. Todos comemoram com aplausos: é a última imagem, o resto é escuridão. Será que desta vez, peguei o bonde errado e chegarei à entrada do inferno?
(...)
        Acordei no hospital vendo minha mãe com as mãos fechadas, num gesto de agradecimento, repetindo: graças a Deus, graças a Deus. Meu pai teve uma reação mais fria, queria saber como foi, quem foi, onde ele está. Voltou para o esgoto – era o que eu queria responder.

Casa da Fernanda, meio-dia
 
        O tempo fechou de uma hora para outra. “É assim nessa época do ano” -, alguém diz, não sei quem. Fernanda manda os meninos correrem, pois vai chover. Rapidamente, os pingos de chuva ganham a companhia dos relâmpagos e dos trovões. As crianças vão gritando alucinadamente, para elas tudo é diversão. O sol estava me entristecendo, não combinava com meu estado inquebrantável de espírito. A tempestade me cai bem melhor. 
        Agora, o dia está realmente perfeito.



Conto livremente inspirado na canção “Um Dia Perfeito” (Dado Villa-Lobos/ Renato Russo), da Legião Urbana, lançada no disco O DESCOBRIMENTO DO BRASIL, em 1993. Com ecos de outras vinte e oito canções.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

PARA UMA APRENDIZ DE FEITICEIRA

 "Queridos pai e mãe, obrigado pela minha infância feliz.
Vocês arruinaram toda a chance que eu tinha de me tornar escritora!"

Cartum de Alex Gregory para 
a revista americana The New Yorker

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

MEUS FILMES PREFERIDOS (DOS MEUS CINEASTAS PREFERIDOS)

Polanski e Sharon Tate  (fotografia de David Bailey)
ROMAN POLANSKI

Filho de poloneses, Roman Polanski nasceu em Paris, em 1933, com o nome de Rajmund Liebling. Pouco antes do holocausto, a sua família, lamentavelmente, resolveu retornar à Polônia - resultando na morte de sua mãe num campo de concentração. Polanski conseguiu evitar a prisão e escapou do Gueto de Cracóvia, vivendo esse período se escondendo em diversos lugares. Com o fim da guerra, concluiu seus estudos na escola de cinema de Lódz, na Polônia. Produziu alguns curtas antes do seu primeiro longa-metragem em 1962,  A Faca na Água, que foi bem recebido pela crítica mundial e o lançou numa bem sucedida carreira internacional.



A FACA NA ÁGUA (Nóz w wodzie, 1962)
Estreia de Polanski, acompanha 24 horas da vida de um entediado casal urbano que quase atropela um jovem numa estrada e acaba oferecendo uma carona para o rapaz, convidando-o a passar o dia velejando, e usando-o em seus jogos. O filme teve grande destaque nos EUA, sendo indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e ganhando uma surpreendente capa da revista Time (curiosamente o Ministério da Cultura da Polônia recusou o filme devido a “falta de compromisso social”, provavelmente por ser um trabalho que não abordava os horrores da guerra). O ambiente claustrofóbico vivido no barco seria retomado em outras obras do diretor.

REPULSA AO SEXO (Repulsion, 1965)
Carol Ledoux (Catherine Deneuve) é uma mulher tímida que trabalha como manicure em um salão de beleza londrino. Sua beleza desperta a atenção dos homens ao seu redor, embora ela seja sexualmente reprimida. Sozinha em casa após a viagem de duas semanas da irmã, Carol entra numa paranóia aterrorizante, com direiro a mãos que surgem da parede, cenas mudas de estupro e um coelho apodrecendo. O passado da protagonista não é desenvolvido, mas a imagem final é sintomática. Primeira parte da suposta “trilogia do apartamento” (que ainda inclui “O Bebê de Rosemary” e “O Inquilino”).


O BEBÊ DE ROSEMARY (Rosemary's Baby, 1968)
Um dos melhores suspense (ou terror) de todos os tempos marca a estreia de Polanski em Hollywood. Rosemary (Mia Farrow) e seu marido (John Cassavetes), um ambicioso e mal sucedido ator, mudam-se para um apartamento em Nova York, onde conhecem um invasivo casal de idosos que mora ao lado. Após Rosemary engravidar em circunstâncias inusitadas, sua gravidez será cercada por excessivos e estranhos cuidados de todos que a cercam, até ela desconfiar que existe algo muito sinistro em tudo isso. Sem assustar gratuitamente, o filme ainda surpreende. 


CHINATOWN (1974)
Jack Nicholson é J.J. Gittes, um detetive particular especializado em casos matrimoniais na Los Angeles dos anos 30. Contratado por uma misteriosa mulher da alta sociedade para investigar o marido dela, ele se vê envolvido numa trama bem mais complexa que mera infidelidade. Gangsteres, corrupção, assassinatos e incesto fazem parte de uma sucessão de reviravoltas,  favorecidas pelo acentuado clima noir, em  um dos melhores roteiros da história do cinema. Recebeu o Globo de Ouro de melhor filme dramático, melhor diretor e melhor ator para Jack Nicholson, além do Oscar de roteiro original.
Roman Polanski faz um divertida (?) participação como “o homem com a faca”. 


O INQUILINO (Le Locataire, 1976)
Terceira e última parte da, suposta, “Trilogia do Apartamento”, é, certamente, o mais injustiçado trabalho do diretor. O próprio Polanski interpreta o kafkiano Trelkovsky (um polonês, funcionário de repartição, que vive em Paris) neste instigante thriller psicológico. Afetado pelo suicídio da desconhecida e ex-locatária do seu apartamento, Trelkovsky passa a vestir as roupas abandonadas e a assumir aos poucos a personalidade dela, acreditando que os hábitos suspeitos dos seus vizinhos, num antigo e estranho edifício residencial, levaram-na à loucura e que agora eles estão fazendo o mesmo consigo. Seria ela a verdadeira “inquilina” em sua cabeça ou ele o “inquilino” na cabeça dela? O desfecho cíclico oferece vários entendimentos. Aqui, o desgastado adjetivo hitchcockiano nunca soa leviano.



Poderiam ter feito parte desta lista:
“Armadilha do Destino (Cul-de-Sac, 1966), A Morte e a Donzela (Death and the Maiden, 1994) 
e O Pianista (Le Pianiste, 2002).

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

PORQUE VI SIMÃO DO DESERTO

Já expliquei AQUI que o título deste blogue faz uma explícita referência ao cineasta Joaquim Pedro de Andrade e sua célebre resposta à pergunta “por que você faz cinema?”, que ganhou, inclusive, uma canção da Adriana Calcanhoto. Entre suas geniais enumerações, ele afirma que um dos motivos para exercer o seu ofício é por ter visto “SIMÃO DO DESERTO”,  produção mexicana de 1965, do diretor espanhol Luis Buñuel. O filme é baseado na história de Simeon Stylites (Simeão Estilita), que viveu na Síria no século V e permaneceu no topo de uma coluna a pregar por quase quarenta anos.  "Santos do Pilar" (em grego: stylos - "pilar") eram ascetas cristãos muito comuns nos primeiros anos do Império Bizantino, que acreditavam que a automortificação do corpo físico asseguraria a salvação de suas almas. Pouco popular no Brasil, Simeão é considerado santo pela Igreja Católica.
          Na obra de Buñuel, Simão leva uma vida austera no alto de sua coluna: reza, jejua, penitencia-se e é constantemente tentado pelo diabo (que surge com as mais diversas formas). Seus milagres são vistos de maneira banal pela população local, que se alterna entre adoradores e detratores, principalmente por ele ditar regras de conduta. Após inúmeros embates, o diabo o leva até aos anos de 1960, numa boate de Nova Iorque, onde Simão, com a barba aparada e bem vestido, acompanha com enfado a performance de uma banda de rock.
           O diretor critica com ironia o fanatismo religioso, um tema delicado, mas abordado sutilmente. A metade do orçamento que havia sido lhe prometido não permitiu que ele filmasse tudo que desejava: uma cena que deveria ter mil figurantes não passou de oitenta, a coluna de dezoito metros reduziu-se a uma de oito, a ideia das moscas que sobrevoariam a barba de Simão foi recusada pelo produtor. Por todas as limitações impostas, o filme não alcançou sequer uma hora de duração. O próprio Buñuel acreditava que se tivessem lhe dado mais recursos, talvez tivesse realizado a sua obra-prima, no entanto a precariedade é exatamente um dos elementos que mais fortalece a película, juntamente com a paisagem repetitiva do deserto, a fotografia em preto e branco e a ausência de uma trama convencional (com origem, motivação e conclusão). Premiado no Festival de Veneza em 1965, SIMÃO DO DESERTO é um filme cada vez mais atual e obrigatório.
          Não sei se eu faria cinema por ter visto SIMÃO DO DESERTO, provavelmente eu teria uma reação contrária e desistiria de qualquer pretensão. Não me sentiria capaz de realizar nada semelhante. Mas Joaquim Pedro de Andrade não tem o seu nome entre os maiores do nosso cinema por mero capricho do acaso.

Pode-se assistir ao filme completo AQUI



terça-feira, 4 de outubro de 2011

SEVERINA

            Acho que eu devia ter nove anos quando minha mãe me segurou na cama para que meu pai abusasse de mim pela primeira vez. Não a culpei, sabia que ela precisava viver sem a brutalidade dele, mesmo que o preço para isso fosse a minha inocência. Durante mais de vinte anos foi assim, mas nunca me acostumei com aquilo, até me matar eu quis.
           Meu pai não me deixava frequentar as aulas da professora Irene, como as outras crianças, nem brincar ou sair sozinha por aí. Era da roça pra casa, sempre sob o teu cabresto. Fugir, tentei muito, só que ele me encontrava toda mão, que nem rês desgarrada, e me batia cada vez mais e me estuprava ainda mais. Barriga eu peguei doze, somente cinco vingaram.
           Todo mundo sabia o que acontecia dentro da nossa casa: a vizinhança, a família, e ninguém fazia nada. Meu pai era homem violento, temido na região, não havia quem bulisse com ele. Só uma vez eu não tive medo: quando ele quis que eu fizesse com minha menina mais nova o mesmo que a mãe fez comigo. Mas isso ele não ia fazer de jeito nenhum, no que dependesse de mim na minha filha ele não tocava a mão. Por causa da minha recusa, fui espancada três dias seguidos: apanhei muito, mas não me curvei. No último dia ele fez questão de amolar uma peixeira de 12 polegadas na minha frente, disse que era pra mim, que quando ele voltasse da feira ia me ensinar uma lição - ele só não imaginava quem acabaria naquela faca.
           Na oportunidade que tive, dei oitocentos reais pro Galego mandar aquele infeliz pro inferno. Não era o que eu queria fazer, nunca foi, só que não tinha outra escolha. Galego nem estranhou o pedido, era como se já estivesse esperando, acho até que ele ficou feliz com o serviço, muita gente ficaria.
***
           Fiquei mais de um ano presa sem me arrepender do que fiz. Que Deus me perdoe, mas a  minha consciência eu trazia tranquila. Quando o juiz disse que eu era mulher livre outra vez, nem consegui acreditar que eu ia poder cuidar dos meus filhos, da minha lida.
           Já apareceu gente me procurando pra fazer filme disso tudo, mas eu não tenho cabeça pra essas coisas. Já perdi vida demais, agora eu quero começar a sonhar.

Poderia ser ficção, mas é realidade:
MULHER QUE MANDOU MATAR PAI É ABSOLVIDA EM RECIFE

sábado, 1 de outubro de 2011

BAHÊA MINHA VIDA

FOTOGRAFIA FÁBIO BITO TELES
As salas (arquibancadas) do cinema pareciam estádios de futebol, espectadores  devidamente uniformizados, com bandeiras, cantos, euforia: foi a estreia do esperado documentário BAHÊA MINHA VIDA, de Márcio Cavalcante. Com mais ingressos vendidos no seu primeiro final de semana em Salvador do que o episódio final da série HARRY POTTER, o filme levou aos cinemas uma multidão de apaixonados, que fizeram filas enormes nos cinemas da cidade, sem perder a vibração um só instante. Provavelmente, muita gente não entenderá essa paixão. Mas a ideia é realmente essa: o inexplicável. Os depoimentos dos jornalistas, ex-jogadores e artistas somam-se à força das palavras dos seus torcedores anônimos durante os cem minutos de exibição, que emociona em muitas partes, principalmente no reencontro dos campeões nacionais de 1959, “em cima do Santos de Pelé” - imagens espetaculares dessa conquista fará a alegria de qualquer admirador do futebol (arrepia os aplausos da plateia para o golaço de Alencar, que muitos apenas tinham ouvido falar, e o uníssono de “Bora, Baêa” para gols antológicos). O título brasileiro de 1988, da “elegância sutil de Bobô”, sua história vitoriosa, seus dramas (que não são poucos), tudo está lá. Mas o protagonista é mesmo o amor pelo clube, algo que vai muito além do mero fanatismo. Ao final, dezenas de pessoas de todas as idades saíram chorando e aplaudindo, contagiando ainda mais quem esperava a próxima sessão.  Em breve, em todo o Brasil.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

POEMA INÉDITO VI

quero o nada
a coisa alguma

o inconstante
a chuva passageira
a embriaguez

quero o anonimato
o esquecimento

o efêmero
a saudade
o beijo daquele carnaval

quero o desapego
as mal traçadas linhas


quero o desnecessário

Herculano Neto

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

(...)

        Não posso negar que durante algum tempo, esperei o seu retorno. Acreditava que a imagem dela indo embora, sem olhar para trás, um dia se transformaria numa manhã chuvosa, com ela a caminhar lentamente ao meu encontro, exausta e a carregar sua mala. Acreditava que ela tentaria esconder da sua face os motivos que a trouxeram de volta e eu tentaria esconder em vão as lágrimas que se confundiriam com a chuva. Acreditava que ela  apenas voltaria, que não pediria desculpas, simplesmente seguraria as minhas mãos. Acreditava que ela me contaria suas aventuras, suas lutas, seus amores e eu escutaria tudo feliz, aceitando sua distância como uma fábula.
        Durante algum tempo, essa era a única imagem que eu tinha dela: uma fantasia, não algo que eu realmente lembrava, que tivesse realmente acontecido, que tivesse me marcado.
        Esperar foi muito mais doloroso.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

(...)

Recebi uma ligação de Capitu ontem à tarde, enquanto eu tentava acordar. Ela fez aquele típico suspense, meio infantil, de “adivinha quem é”, mesmo sem eu me importar e já desconfiando quem poderia ser. Depois de se identificar ela quis saber se eu estava surpresa, respondi que não. Há muito tempo que nada nessa vida me surpreende, muito menos uma ligação – mas não lhe disse isso. Capitu achou estranho eu não ter feito nenhum comentário a respeito do seu nome quando nos conhecemos, ainda assim ela destrinchou uma explicação que deveria utilizar frequentemente: que não se chamava Capitu, muito menos Capitolina, como a enigmática criação machadiana; que se chamava Lilian, ou Lídia, não me recordo exatamente; que recebeu o apelido de uma colega quando chegou com ressaca aos catorze anos durante uma aula de literatura; que achou “da hora” e resolveu adotar a alcunha oficialmente com uma tatuagem na altura do cóccix no ano seguinte; que as únicas pessoas que a chamavam pelo seu próprio nome eram atendentes de telemarketing e gerentes de banco... Se dependesse do seu frenesi, e dos bônus fornecidos pela sua operadora de telefonia, ela continuaria falando muito mais, porém interrompi seu entusiasmo com uma desculpa qualquer, pouco convincente. Antes de desligar ela quis marcar um encontro, “um drinque apenas”, alegou que eu estava devendo. Prometi que ligaria outra hora.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

NOSSO PRÓPRIO TEMPO

Sempre gostei de ficção científica e sempre odiei minha vida de adolescente, afirmar que eu habitava um episódio de Todo Mundo Odeia o Chris não seria exagero, embora, naquela época, eu estivesse mais para Kevin Arnold ou Doug Funny. Com as inseguranças típicas da idade, vivia arrependido por tudo que fazia ou (principalmente) deixava de fazer, imaginando como poderia ter sido as outras possibilidades e a procurar onde ficava o CTRL+Z da vida real (acho que todo adolescente é um pouco assim). Quisera eu ter despertado na mesma manhã, seguidamente, como se fosse o dia da marmota. Acreditava que a qualquer momento poderia aparecer um “eu” vindo diretamente do futuro, mais velho e mais sagaz, que me ensinaria o caminho das pedras, que me explicaria como eu deveria agir para garantir uma existência futura sem remorsos. Costumava brincar dizendo que não me assustaria se algum dia eu aparecesse para mim e ainda me cumprimentaria firmemente, olhando nos meus olhos: “estava te esperando”. No entanto, não demorei para descobrir que não conseguiria fugir das minhas responsabilidades e que tudo que eu considerava danoso ajudaria a moldar a pessoa que agora eu sou. Curiosamente, ou obviamente, nada muito diferente disso acontece em O HOMEM DO FUTURO, de Cláudio Torres (“Redentor”, “A Mulher Invisível”). Wagner Moura é um amargurado cientista e professor universitário chamado Zero, que teve sua vida modificada a partir de uma fatídica festa à fantasia no, agora distante, ano de 1991, onde foi humilhado por Helena (Alinne Moraes), seu grande amor. Acidentalmente, Zero viaja no tempo exatamente para o dia da festa e aproveita a oportunidade para modificar sua própria história, mas nem tudo sai como esperado.
         O cinema tem verdadeiro fascínio pelos paradoxos temporais ocasionados pelas viagens no tempo – que é praticamente uma espécie de sub-gênero da ficção científica. “O Planeta dos Macacos”, “De Volta Para o Futuro”, “Jornada nas Estrelas”, “Efeito Borboleta” sobram exemplos. Gosto, particularmente, do curta-metragem “Barbosa”, de Jorge Furtado, onde um homem tenta impedir a derrota brasileira na final da Copa do Mundo de 1950 no estádio do Maracanã, trauma de sua infância, no entanto ele próprio se torna o motivo da distração do goleiro Barbosa, que resulta no gol vitorioso da seleção uruguaia. Sei que não faltará cético para dizer que se fosse possível viajar no tempo algum viajante já teria retornado do futuro (a não ser que o considerassem louco, como ocorre em “Os 12 Macacos”), nem crédulo para explanar sobre universos paralelos e futuros alternativos (a contrapor a teoria de causa e efeito, que diz que se alguém voltasse no tempo para impedir um acidente e conseguisse, o acidente, que é o motivo da viagem, deixaria de existir, consequentemente a viagem também).
          O enredo de O HOMEM DO FUTURO poderia se resumir, simplesmente, à letra da canção “Tempo Perdido”, emblemático sucesso da Legião Urbana, que permeia toda a película: de “todos os dias quando acordo”, passando por “então me abraça forte” e culminando com “somos tão jovens”. Aliás, boa parte da obra parece condensada no clipe musical que serviu como divulgação (vídeo abaixo). Se a filme fosse apenas esse vídeo, como aconteceu com “Eduardo e Mônica” em uma campanha de telefonia celular, teria sido genial. Propositalmente, não há nada original. Mas a ideia é mesmo essa: resgatar a simpatia de uma descontraída sessão da tarde. Para quem não viu, aviso que quanto menor a expectativa, menor será a impressão de tempo perdido (sem trocadilho). Com viagens temporais, uma festa à fantasia e um hino juvenil de pano de fundo, o trabalho do diretor Cláudio Torres não sai da adolescência, mergulha no raso, assim como em seu filme anterior, onde era idealizada a mulher perfeita, outro desejo da juventude, ainda que o exemplo de perfeição fosse Luana Piovani.

          Já não quero voltar no tempo, quero apenas mais tempo para realizar tudo que desejo.
       

terça-feira, 6 de setembro de 2011

(...)

Preciso de alguém que tenha medo, que erre, que peça desculpas, alguém que sorria engraçadamente, que contamine o foyer com sua gargalhada desajeitada. Preciso de alguém que tenha dúvidas, que confie em mim, mas que pense duas vezes antes de se atirar nos meus braços, alguém que se confunda na multidão, que seja comum até no nome que herdou de sua avó. Preciso de alguém que fale a verdade mesmo quando estiver me enganando, que não se iluda com minha pose, com meus blefes, alguém que não me repreenda quando meus burros derem n'água. Preciso de alguém pra ver Godard, pra ver Eisestein, pra ver o blockbuster do momento, alguém que acorde tarde e que não me desperte dos meus sonhos, que ame Londres e veraneie em Itaparica. Preciso de alguém que entregue os pontos, que não dê um ponto sem nó, alguém que siga em frente, mas que não tenha pressa, afinal a pressa é a inimiga dos idiotas. Preciso de alguém para terminar a noite de sábado caminhando na praia domingo pela manhã, alguém que me surpreenda, que contrarie tudo aquilo que idealizo.  

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

(...)

Acho que foi num filme que ouvi alguém dizer que os pais dos outros sempre aparentam ser melhores do que os nossos, mas que os nossos avós são melhores do que os avós de qualquer outra pessoa. Não sei até onde isso é verdade. O esforço dos meus pais era evidente, eu que não estava disposta a posar de filha querida, orgulho da família, embora o decadente rótulo de ovelha negra também não me caísse bem (...) Meus únicos avós, por parte de mãe, tinham dezenas de netos, e outros tantos bisnetos, e nunca pareceram muito interessados em mim. Imagino que nem o meu nome eles sabiam exatamente (...) Papai era um homem irritantemente tranquilo, que evitava demonstrar suas emoções - se estava alegre, se estava triste, impossível saber. Todos aqueles sentimentos, que eu imaginava estarem submersos, jamais vieram à tona. Nem o Alzheimer  tirou a placidez de sua face (...) Não me senti culpada quando minha mãe nos abandonou, há tempos que eu percebia sua mudança de comportamento: sua euforia, seus silêncios, seus porres. “Se eu pudesse eu te levaria comigo” era a pior frase que ela poderia me dizer.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

POR QUE EU NÃO CONSIGO GOSTAR DO UFC?

         UFC (Ultimate Fighting Championship) é um torneio de artes marciais mistas, mais conhecido pela sigla em inglês MMA, uma sensação mundial que caminha para algo além do simples fenômeno de entretenimento. Há quem diga que em breve será, se já não for, o segundo esporte mais popular do Brasil (o que deve explicar a presença de Felipe Melo na última Copa do Mundo de futebol).
          90% do tempo que desperdiço na frente da TV é dedicado à programação esportiva (até de rugby eu gosto), no entanto não consigo simpatizar com o UFC. Já tentei, juro. Cheguei a gravar um documentário onde apresentavam a história, as regras, os ídolos, mas me distraí completamente quando começaram a falar sobre o octógono: imediatamente passei a recordar a professora Yêda, no antigo Polivalente de Santo Amaro, e os seus enormes compassos e esquadros de madeira constantemente sujos com pó de giz. Outro dia, fui parar num bar onde exibiam as lutas no canal de pay per view, e a atenção e gritaria dos homens, e também das mulheres, eram impressionantes. Não direi que assemelhava-se à plateia das arenas que assistia entusiasmada à barbárie dos gladiadores porque nunca estive na Roma Antiga (não que eu me lembre), mas já vi algo similar nas rinhas de galos. Pedi um Campari e uma soda, com muita dificuldade, e fui embora pouco depois.
          Todo esse interesse parece, simbolicamente, querer resgatar a masculinidade perdida nas últimas décadas, num exemplo máximo de virilidade (mesmo que meu preconceito não compreenda como sendo muito másculo, e hétero, dois musculosos se agarrando). Se era para reunir um grupo de homens urrando e bebendo cerveja, melhor seria colocar duas turbinadas usando biquíni e lutando num tablado de lama, mas não seria suficiente, faltaria testosterona, reduziria o esporte a mero fetiche.
          Não quero posar de moralista, de ofendido, que considera o evento muito violento e deseducador. Imagino que a essa altura alguém já deve ter pensado que violento são os noticiários policiais, o trânsito, o centro da cidade, o dia... Sei que o UFC possui regras seguras para os seus praticantes e que qualquer partida do campeonato brasileiro de futebol é muito mais perigosa para os jogadores (e para a torcida), só que como modalidade esportiva não me seduz. Conheço esotéricos, intelectuais, feministas, homossexuais e evangélicos que adoram esse esporte, por que não eu? Será por que eu não brincava de lutar durante a infância? Por que eu sofria bullying? Por que eu desprezava os filmes de ação que ainda hoje fazem sucesso, embora a maioria estreie diretamente em home vídeo? Por que eu sou metido a besta? Na verdade, não sei porque não gosto do UFC, talvez seja simplesmente ciúme: quando esse assunto chega à mesa do bar todos se animam e a conversa se torna monotemática; sobrepondo-se, inclusive, à vida alheia, futebol, mulheres e política (nessa ordem). O que me deixa silenciosamente deslocado.
          O próximo sábado poderia ser uma boa oportunidade para eu me transformar no mais novo entusiasta das artes marciais mistas, porém prefiro não arriscar, provavelmente haverá alguma reprise do Bob Esponja em outro canal.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

30 ANOS SEM GLAUBER

Curiosamente, ou estranhamente, conheço mais pessoas que não apreciam a obra de Glauber Rocha do que o contrário. Parece um clichê às avessas: afirmar que não “curte Glauber” parece soar legal, incomum, foge dos estereótipos, demonstra identidade própria – o que não passa de uma grande bobagem. Sei que a obra dele não é de fácil digestão, mas se permitir é se deparar com uma cinematografia envolvente, provocativa, subversiva, brasileira. Não gostar do trabalho de Glauber é não gostar do neo-realismo,  é não gostar da Nouvelle Vague. Não gostar de Glauber é não gostar de cinema.
          Na arte que Humberto Vellame criou em 2008 para a capa do meu livro CINEMA, Prêmio Braskem de Literatura, ele utilizou, entre outras imagens, a emblemática figura do Corisco de Othon Bastos em DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL, algo que muito me alegrou.  No mesmo ano, compareci à reinauguração do histórico Cine Glauber Rocha, na Praça Castro Alves (antigo Cine Guarany, fundado em 1919), para assistir à versão restaurada do clássico O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO, primeiro longa-metragem colorido do diretor, e a oportunidade de ver um filme dele numa sala de cinema me seduziu ainda mais. Este, provavelmente, o seu trabalho que mais se aproxima do grande público. Trazendo como protagonista Antônio das Mortes (nome pelo qual o filme é conhecido internacionalmente), personagem mais popular de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, uma espécie de caçador de recompensas, responsável  pela morte do cangaceiro Lampião e que aceita a proposta de combater um bando de jagunços, numa mistura de cordel, ópera e western norte-americano. O filme rendeu a Glauber o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes (a imagem que ilustra esta postagem é uma reprodução da capa da revista Veja, de 28 de maio de 1969, que celebra a conquista do cineasta brasileiro). Mas devido aos ditames do governo militar, Glauber só voltaria a dirigir novamente no Brasil dez anos depois.
          Morando no centro da capital da Bahia, trafego pelos mesmos lugares que Glauber Rocha um dia caminhou, imagino sua presença nas calçadas dos Barris, nas praças e nos antigos bares da cidade. E se hoje Salvador é outra, a importância dele nos nossos dias não seria diferente, Glauber ainda seria uma personalidade instigante, questionadora. Certamente.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

(...)

         Derrubei todas as carreiras pensando em você: por amor, angústia, indiferença ou qualquer bobagem assim (cinco gramas de paixão e fúria). Derrubei todas as cartas do meu castelo de mágoas pensando nos nossos planos: por impaciência, imprudência ou desespero (no meu jogo limpo, nenhuma carta escondida, nenhum truque, nenhum blefe. Nada). Derrubei meus preconceitos, minhas lógicas. Derrubei os meus muros, os meus mitos.  Por você, derrubei meu próprio rei. 
          Perto de você qualquer certeza é relativa, tudo é muito pouco, tudo é precipício.


segunda-feira, 15 de agosto de 2011

ELVIS NÃO MORREU

        Basileia, 1983.
        Os últimos anos de investigação me levaram àquele chalé. No início, encarei como mais um extravagante trabalho, depois se tornou quase obsessivo. Os contratantes me dispensaram ainda nos primeiros meses, alegaram que estavam convencidos de que ele realmente tinha morrido. Mas eu quis continuar por conta própria, era pessoal.
        Quando eu adentrei o salão, decorado com antigos quadros, ele estava sentado na poltrona, de frente para a lareira - parecia muito mais gordo do que em sua última aparição. Sem olhar para mim, ele falou num tom de voz tranquilo e extremamente grave:
        — Creio que você sabe que não poderá sair daqui.
        — Sei, mas isso é o que menos importa.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

THE NATIONAL - RUNAWAY

         O vídeo abaixo é um produção em stop motion realizada pela holandesa SOPHIE VAN DER BURG utilizando parte da canção “Runaway”, da banda americana The National.
         Provavelmente, “Runaway” foi a canção que mais me afetou no último ano, presente sempre em momentos delicados e reflexivos, talvez por isso ela tenha ficado algum tempo "esquecida". No entanto, durante uma dessas viagens melancólicas que amiúde faço para o meu torrão natal, fui surpreendido pelo modo aleatório do tocador de MP3, exatamente quando eu rememorava um desses momentos.
          Ironias da vida: “But I won't be no runaway, cause I won't run.
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