terça-feira, 18 de julho de 2023

LÁPIDE DE PAPEL

Bóris costumava repetir que seria o último da galera a morrer. Gracejava dizendo que beberia nossos defuntos, que contaria as nossas mais vergonhosas aventuras no velório a cada lasquinê e que estaria sempre presente nos nossos túmulos (lendo algum poema ou maldizendo as novidades da estação enquanto envelhecia sem pressa). Como ficou fácil imaginar, Bóris não foi o derradeiro a morrer, também não foi o primeiro. Bóris viveu até à última ponta as dores e as delícias de ser o que era, o que sempre foi. Na reta final, já debilitado e envolto em arrependimentos, não abandonava sua verve crítica, sua mordacidade e passadismo declarado. Além disso, não abria mão de uma polêmica: adorava derrubar os argumentos alheios como um castelo de cartas ao vento. Era sua diversão. Nunca escondi que sair de Santo Amaro foi angustiante, muitos conterrâneos, por necessidade, tiveram que fazer o mesmo. No entanto, somente agora, compreendo que foi muito mais angustiante para quem decidiu permanecer, quem teve que enfrentar, dia após dia, todos os vazios da cidade. Curiosamente, os amigos que faleceram não partiram; talvez tenham cansado de ficar. 

***

Tenho um livro de contos inéditos na gaveta dedicado aos amigos que foram embora cedo demais. Infelizmente, amiúde, edito o arquivo para incluir um novo nome na dedicatória. Ainda não tive coragem de incluir o nome de Bóris nessa lápide.


segunda-feira, 10 de julho de 2023

A CONFRARIA DOS ZÉ BUCETA

Do antigo Complexo Escolar Polivalente de Santo Amaro ao Centro Educacional Teodoro Sampaio, sempre pertenci à turma dos nerds (muito antes do nerd ser considerado um cara legal), quando éramos apenas amigos condenados a brilhar academicamente e a falhar socialmente. No entanto, para os rapazes mais velhos e as garotas mais descoladas, não passávamos de donzelos devoradores de livros, “um bando de Zé Buceta”, como eles costumavam nos intitular. Na cultura pop Zé Buceta poderia ser invariável como Pokémon ou  Jedi, o singular soa muito mais forte. Poderia ser, inclusive, o nome de uma equipe de indivíduos super aprimorados publicada pela Jacuype Comics, defensores da biblioteca analógica e das vítimas de bullying no corredor. Em algum universo paralelo o Zé Buceta deve ser um indivíduo cobiçável, fascinante; repleto de mistérios, e não um pária, alguém a ser evitado. É possível que numa revisão histórica cuidadosa a expressão seja considerada machista, misógina, motivo suficiente para um cancelamento no Twitter.  Só sei que os Zé Buceta do Polivante e do Teodoro se espalharam pelo mundo (“cada um fez sua vida de forma diferente”¹), com frequência, relembramos alguma anedota do passado nos grupos de WhatsApp e rimos com emojis e stikers inusitados (“às vezes me pergunto: malditos ou inocentes?”).  


¹“Meus Bons Amigos” (Fernando Magalhães / Guto Goffi / Maurício Barros), canção do Barão Vermelho lançada em 1994



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