Sempre preferi o factóide ao fato, a inverossimilhança à realidade, a fantasia ao documentário. Sempre fui o último no telefone sem fio, sempre fui ludibriado pelas aparências. Por isso, costumo me irritar quando ignoram meu mérito de ficcionista, quando confundem o criador com a criatura, o contista com o cronista – e, ultimamente, isso tem sido cada vez mais comum. Nem tudo que eu escrevo é fruto das minhas experiências, das minhas observações do mundo. Além do ocorrido, há o imaginado.
Já perdi a conta de quantas vezes me perguntaram sobre situações e personagens, como se tivessem acontecido comigo, como se fossem eu. Sinto a decepção no olhar dessa parcela de leitores quando respondo contrariado que nunca fui preso, nunca fiz programa com travestis, nunca fui travesti, nunca sofri uma overdose, nunca trabalhei para o tráfico, nunca fraudei documentos para fugir do país, nunca testemunhei uma chacina, nunca morei nas ruas ou numa tribo indígena, nem sou jornalista, estudante de veterinária ou tive um cãozinho chamado Sabido. Uma explicação pouco convincente, talvez seja porque construo quase todos os meus contos em primeira pessoa, o que gera certa cumplicidade e aproxima mais a ação do leitor. No entanto, isso está distante de ser uma característica de estilo ou artimanha, é apenas resultado da minha inabilidade em desenvolver satisfatoriamente textos em terceira pessoa. Parece desnecessário dizer, mas a minha biografia não está nos meus livros.
Algumas pessoas se aproximam de mim achando que sou “diferente”, “especial”, que o meu coloquialismo é poesia vinte e cinco horas por dia, que a minha vida é repleta de histórias absurdas e divertidas. Não sou nenhum super-homem, sou um humano que erra, chora, sonha, atrasa as contas, esquece, se arrepende, pede desculpas. Citando Lulu Santos: “não leve o personagem pra cama, pode acabar sendo fatal”. É possível que essas pessoas sofram da Síndrome de Zuckerman, que segundo Rubem Fonseca, em DIÁRIO DE UM FESCENINO, é um mal que acomete os leitores e os faz pensar que autor e personagem sejam uma coisa só. (Nathan Zuckerman é o protagonista de diversos livros do romancista norte-americano Philip Roth. Após publicar um livro, Zuckerman é perseguido pelos leitores, que acreditam que tudo que ele escreveu se refere aos seus amigos ou parentes). Melhor seria que fosse diagnosticada em mim, por uma equipe de questionáveis especialistas, a Síndrome de Bartleby, que é quando os autores deixam de produzir novas obras, e excluísse meu blog, me mudasse para uma ilha ou me isolasse definitivamente no meu apartamento. Somente agora, compreendo porque as telenovelas avisam ao final do capítulo que “essa é uma obra de ficção”. Poderia ter usado artifício similar desde o começo, em Santo Amaro. Hoje, seria reconhecido pelo que realmente sou. E seria mais infeliz.