quarta-feira, 28 de novembro de 2012

SALVADOR ABAIXO DE ZERO, por Edgard Navarro*

Superoutro, 1987, direção Edgard Navarro
Fatos de uma tragédia urbana e existencial contaminam e perpassam os textos de Herculano Neto. Seu estilo imprevisível faz trapaça com o leitor, promete e negaceia; sacaneia e pirraça, entorna o caldo e lamenta o ocorrido. Temerário e malcriado, ele trafega na contramão, nunca estando onde se espera. E assim surpreende com momentos de veracidade e dor pungente. Sempre dilacerado, Herculano reúne coragem e velhacaria, prosódia barata ou complicada, conforme a conveniência, tudo de caso pensado, desorientando a seu bel prazer. Me espanta o desencanto humanitário desse mestiço do Recôncavo! Deuses me defendam da saliva sulfúrica, corrosiva, desse gracioso íncubo, desgraçado súcubo. Bukowski! Quanto asco, sordidez, sarcasmo, desventura, cinismo, Peréio! Penso em rituais macabros de injúria e autopunição. Amar o verdugo, lamber o aço impiedoso de sua espada. Aqui e ali Camões e Camus me assaltam, o desconcerto do mundo, o absurdo e o suicídio: um dia os cenários desabam e é preciso imaginar Sísifo feliz. Também nos evoca o humor-escárnio de Augusto dos Anjos: tuberculose, impotência, desprezo e mais asco. E a tudo preside a náusea-sartre. De Clarice nos chega a mesmice, a vida sem magia e sem romance de uma Macabéa, o fabuloso destino de uma Emília Pereira (Amélie Poulain). Além de uma colecionadora de borboletas de mentira, os braços amputados de bonecas carecas com câncer nos ossos e um menino suicida a quem disseram que teria o corpo retalhado para ser utilizado em feitiçarias. Pobre de mim, animal compassivo, lá no fundo desse pântano viscoso diviso a pálida sombra de uma fina coisa qualquer – digna, diáfana, volátil. E embaixo dos escombros da mina encontro beleza. Toda a beleza que se negou no instante primeiro da abordagem. Afinal, um mineiro soterrado precisa de luz e ar e (valham-me os deuses!) de amor! 

Cineasta


SALVADOR ABAIXO DE ZERO / EDIÇÕES P55 - COLEÇÃO CARTAS BAHIANAS / 
R$ 15,00 (solicite seu exemplar diretamente com o autor) / 
OU NO SITE DA LIVRARIA CULTURA

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

SALVADOR, A CAPITAL NOIR DE HERCULANO NETO

 (CLIQUE NA IMAGEM PARA AMPLIAR)
Matéria publicada no jornal A TARDE, 
edição de 20 de novembro de 2012, 
pelo poeta e crítico de literatura Henrique Wagner.

Há um velho palhaço pançudo que circula pela praça do Campo Grande, muito bem caracterizado, vendendo brinquedos baratos, mas com um ar de enfado terrível. Volta e meia para num ou noutro poste e acende um cigarro. Um palhaço velho, cansado, fumando e vendendo brinquedos numa das mais importantes e populares praças da Bahia. Esse palhaço, que não sei se ainda vive nesse exato momento, representa muito bem uma cidade grande mutilada por seus governantes e pelo descaso com a cultura e a educação de nossas décadas. Esse palhaço é atual. Visão cruel, impiedosa, de algo originariamente engraçado.

O novo livro de Herculano Neto, SALVADOR ABAIXO DE ZERO, é esse palhaço, é essa cidade atual. É essa Bahia sem abadá, a pele de ébano que é a alma nua do baiano do bairro da Liberdade (cidade média, diria Herculano): é essa alegria trágica e essa piada sem graça. Herculano, em seu pequeno volume de textos curtos, é um ficcionista com mão suja de papel de jornal o mais barato. Seu livro, deliberadamente pulp, é marcado por uma deliciosa linguagem jornalística, ágil, fluente, e cada um dos pequenos textos parece uma notícia. E uma notícia chocante, sobretudo quando não choca.

Primeiro a registrar, em literatura, o termo “Pituaço”, essa ortoepia inventada pelo povo para evitar a rima, num dos contos do livro. Herculano Neto é atualíssimo e atualiza seus leitores, naturalmente. Pode-se dizer, sem embargo, que Herculano é um repórter, e quase estamos diante de um jornalismo literário, mais para Hunter Thompson do que para Thomas Wolfe. Essa marca humana faz com que o leitor se identifique de imediato com o texto, a ponto de seguir uma história não só pelo que há de bem engendrado em literatura, mas pelo que há de verossímil e de utilidade pública. Um escritor é, antes de qualquer coisa, um cronista de seu tempo. O que seria da Bahia dos anos 40 e 50 sem Jorge Amado? Uma Bahia registrada por historiadores; portanto, sem a arte e o estilo de um ficcionista. Aprender sobre a Bahia com Jorge Amado é muito mais prazeroso que aprendê-la com Theodoro Sampaio ou até mesmo com José Valladares, que tinha uma escrita saborosíssima.

Baiano sem nostalgias, urbano com vista para o Recôncavo, de onde viera, Herculano Neto inscreve Salvador no rol das grandes metrópoles literárias, ao lado do Rio de Janeiro de Rubem Fonseca (antecipado por um gênio do porte de Marques Rebelo, autor de Marafa e A Estrela Sobe, dentre outros livros, quase sempre ambientados no subúrbio carioca dos anos 30 e 40; vale ainda lembrar que a primeira edição de Marafa trazia uma espécie de dicionário de carioquês em suas últimas páginas) e da São Paulo de Marcos Rey. Seus contos são citadinos, mas de passagem, uma vez que é possível sentir o pincel do santo-amarense aqui e ali. E é russo por seguir os preceitos do conto tchecoviano, com seus finais dissimulados, silenciosos.

Sua primeira pessoa é devastadora. Insere subitamente o leitor na história, no livro, no bolso. Admirável habilidade para vestir personas, ser a pessoa do texto – e todo tipo de pessoa. Se a narrativa na primeira pessoa, de um modo geral, tem fácil capacidade para aumentar a identificação do homem de cidade grande com o texto e o herói do texto, no caso de Herculano essa capacidade é catapultada com tremenda força em função da matéria compacta de que dispõe, em seus contos curtos, e da linguagem despojada de todo e qualquer maneirismo ou pessoas outras – que seriam fantasmas, em verdade; talvez de Canterville, talvez dos sonos culpados de um Scrooge.

Cruel e engraçado como os palhaços de circo que fumam, ainda fantasiados, SALVADOR ABAIXO DE ZERO inventa uma Bahia hollywoodiana para desconstruí-la com a força com que Hollywood construiu e destruiu Marilyn Monroe. Uma Bahia existente, mas revelada em sua polpa pela escrita de um brutalista literário, termo usado por Alfredo Bosi para designar o estilo do mineiro Rubem Fonseca.

Eis um livro que orgulha o baiano que tem vergonha de ser baiano, em certas ocasiões e lugares, e reinaugura uma cidade cheia de um ritmo frenético e decadente, cheia de uma literatura úmida e soturna, contrária ao sol de uma cidade que ainda tenta ser apenas litorânea.        


SALVADOR ABAIXO DE ZERO / EDIÇÕES P55 - COLEÇÃO CARTAS BAHIANAS / 
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segunda-feira, 19 de novembro de 2012

DEPOIS

      O fim era inevitável, não como uma tragédia anunciada (foi até surpreendente para muitos), mas como uma lógica prática: sem exceções; sem poréns; sem aforismos... Era tão evidente o aproximar do final que duvidar era a única opção. E assim foi. Duvidei até o último instante, não querendo me enganar, queria somente empregar emoção ao derradeiro ato de um relacionamento que sempre foi movido a excessos. No último dia não havia medo, angústia ou lágrima em seu olhar. Havia certeza. Ouvi palidamente uma sequência de clichês de despedida e esbocei sem muito convencimento um “se é o que você quer...” (um etéreo abraço fechou o ato). Não era noite, não chovia, a rua não estava deserta e ninguém observou parado o outro ir, embora, eu deva admitir, que após alguns segundos de lenta caminhada, tenha olhado para trás.
         Depois foi o vazio...

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

SALVADOR ABAIXO DE ZERO


cidade alta
cidade média
cidade abaixo das expectativas

O volume de contos de Herculano Neto pega emprestado o título de um livro e filme (“Jamaica Abaixo de Zero”) para desconstruir alguns estereótipos soteropolitanos, sempre enxergando a cidade de dentro pra fora, abrindo mão de uma incerta baianidade nagô mal propalada e do lugar comum do ponto de vista racial e religioso 
 
SALVADOR ABAIXO DE ZERO é a cidade dos moradores de rua, dos sacizeiros, das prostitutas, dos inoportunos vendedores de fitinha do Bonfim. É a cidade dos ambulantes, dos badameiros, de um povo que se acotovela nos pontos de ônibus e se digladia do outro lado da corda durante o carnaval. A cidade das periguetes e dos miseravões, da juventude classe média que frequenta academia usando abadás de carnavais passados. Uma cidade que não faz questão de esconder a sujeira das suas ruas embaixo do tapete, prefere estampá-la ao lado dos seus cartões-postais. Uma cidade onde periferia e centro se confundem. Uma cidade que não deixa de ser alegre e ácida na mesma medida.

Com muito humor, às vezes negro, mas sem o ranço pseudo moralista dos noticiários populares, SALVADOR ABAIXO DE ZERO nos apresenta uma Bahia contemporânea e absolutamente sugestiva.

Lançamento dia 13 de novembro
Casa de Tereza, Rio Vermelho, Salvador
Valor: R$ 15,00


SALVADOR ABAIXO DE ZERO / EDIÇÕES P55 - COLEÇÃO CARTAS BAHIANAS / 
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