sexta-feira, 19 de abril de 2024

NO TOCA-FITAS DO MEU CARRO XXI

Violonista da extinta banda Dialética, expoente da cena rocker do Recôncavo Baiano, o músico santamarense Dum Lima se arrisca em seu primeiro trabalho solo e totalmente autoral. Se em seu antigo grupo ele produzia arranjos repletos de camadas que flertava com uma espécie de rock progressivo à brasileira; agora ele trilha um caminho minimalista, onde “menos é mais” é a ordem da vez. Nas onze faixas do álbum, encontramos texturas sonoras, climas que nos remetem ao Clube da Esquina e ao indie dos anos 2000. Dum Lima parece buscar sempre as melhores soluções harmônicas: é pop sem ser superficial e é sofisticado sem ser hermético. Seu canto é doce, suavemente baixo, nos convida a prestar atenção. Amparado por Chuck Silva, o disco abre com “Mentiras”, uma das pequenas faixas, quase vinhetas, “tudo muda, tudo passa”, daquelas inverdades que teimamos em acreditar. Mas o tom a partir daí não é de irrealidade, é de saudade – que não por acaso é o título da última canção (que poderia, também, ser a faixa de abertura). A próxima é “Por um Triz”, uma resignação, um deixar ir, “ela vem e sai/ ela não quer mais falar”, antecedendo o sabor mais leve de despedida da faixa que batiza o álbum. “Todo Adeus” deseja um fim de dia que não existe mais, espalhando a saudade em toda parte. Em “Devendra” os sintetizadores nos chama para dançar ou apenas bater um pouco os pés ou balançar a cabeça sem sair do lugar, talvez a saudade não seja tão triste assim. “Mãe” nos coloca de volta na rota da reflexão, com versos do poeta Ediney Santana, “que o inverno dos meus dias/ o abraço seja um sol”, é um acalanto às avessas, como se agora acariciássemos os cabelos brancos de uma velha senhora que adormece silenciosamente em nosso colo. “Fim de Tarde” traz uma lembrança serena, uma polaroide que insiste em não desbotar, é um tema que se repete, a saudade na floresta azul é o entardecer. “Há um rastro de chumbo em seus olhos quando desiste”, a tragédia da contaminação por cádmio e chumbo que acometeu a cidade de Santo Amaro da Purificação serve de metáfora para a partida em “Dos Rastros”, que tem versos do conterrâneo Herculano Neto. “Ana Louise” vem com a clarineta de Wylton Barbosa, um violão marcando um samba intimista no terreiro e finaliza refereciando a poesia marginal setentista. Já “Ada” é a casa vazia, é o tropeçar em brinquedos, é saudade, mas uma saudade azul. Como diria Tavito em “Rua Ramalhete”: “sem querer fui lembrar”, citada em “Metal”, a penúltima faixa, sobre um amigo que foi embora cedo demais. Assim é a saudade, nos apanha inesperadamente, por acidente, quando menos esperamos. Impregnado de nostalgia e melancolia, Dum Lima e a Floresta Azul está disponível nas principais plataformas digitais e futuramente em mídia física.

 


sexta-feira, 5 de abril de 2024

SAUDADE EMOLDURADA

Minha mãe só possui uma foto da infância: numa praia com duas primas que não conheci, provavelmente em 1960 ou 1961. Um retrato pequeno, com as bordas arrendondadas, que ela sempre guardou com extremo cuidado (estranho imaginar que meu filho com cinco anos deva ter cerca de dez mil fotografias e dificilmente dará valor a alguma no futuro). O apego de minha mãe me faz pensar em Antonia, a protagonista da excelente graphic novel Regresso ao Éden, do espanhol Paco Roca, que também preserva com carinho uma fotografia de família – que será o mote para o autor nos apresentar um painel da Espanha no pós-guerra sob os rigores da ditadura franquista. Pouco antes da pandemia ela me pediu para tentar restaurar o retrato, a paisagem ao fundo já havia desaparecido e as crianças em primeiro plano quase não existiam mais, agora o bucolismo da imagem não passava de um borrão sépia. Impossível de recuperar. Assim como na foto da praia, a memória da minha mãe também tá se apagando. Coisas simples estão deixando de fazer sentido, informações recentes se esvaem instantaneamente, levadas pelo acaso. Em minutos uma mesma pergunta se repete – é admirável e melancólico o esforço dela fingindo que se lembra, que sabe sobre o que estamos conversando. Curiosamente, ela se recorda com detalhes da fotografia, o que estavam fazendo naquela manhã, o paletó muito folgado do fotógrafo, o cheiro adocicado de uma tia-avó, o sabor das frutas que carregaram numa cesta, a areia que perdurou em sua sapatilha durante semanas, o vento frio que entrava pela janela do automóvel no retorno. A foto, como aquele momento, hoje só existe em sua memória. 

 

sexta-feira, 1 de março de 2024

WALTER MATTHAU NÃO GOSTA DE POESIA

  

Envelheci. E aqui não pretendo elucubrar sobre como envelhecer é um processo natural extraordinário, quase divino; ou como é terrivelmente desagradável, um saco. Não. O envelhecimento chegou bem acompanhado com o amadurecimento (embora eu acredite que isso seja inevitável alguns coroas insistem em me contradizer propagando bobagens por aí). No entanto, não consigo perceber na minha escrita tal amadurecimento, tudo que escrevo parece se repetir e remeter para um eu que não existe mais, um eu que fez um aceno de despedida em alguma esquina da década passada. Meus parceiros musicais me enviam canções e devolvo com letras que não me contentam, não são as palavras que quem eu sou queria dizer, são as palavras que quem eu era insiste em gritar. Meus versos ainda lembram desabafos adolescentes, sou quase um Billie Eilish do Imbuí. Alguns colegas sofrem da mesma enfermidade, leio suas publicações como fastidiosas sequências de um mesmo livro que os segundos cadernos no domingo rotularão como “estilo” ao lado de uma fotografia low profile meio pós-punk oitentista. Não quero um carimbo de estilo. Quero que alguém me leia e diga algo como “nem se assemelha com o cara que escreveu xxx”. Independentemente do contexto ou intenção eu diria: ainda bem.

 

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