quinta-feira, 27 de outubro de 2011

UM DIA PERFEITO

Casa da Fernanda, 11:15 da manhã
 
        As crianças passam correndo por mim, em mais uma de suas inventivas brincadeiras. Quando eu era criança, costumava inventar muitas, mas não saía correndo por aí, somente inventava. Sentado na varanda, o sol já começa a alcançar minhas pernas brancas, logo terei que entrar. Marianne, Natália e Leila me fazem companhia, elas são discretas e não tocam no assunto, apenas falam bobagens sobre os homens que tentam sem sucesso acender a churrasqueira no jardim -, e riem bastante, até  parece ensaiado.
        O cachorro-quente na casa da Fê já é quase uma tradição, há muita gente que eu não conheço, fazia tempo que eu não vinha. Admito que eu precisava respirar um pouco, encontrar pessoas normais, com vidas normais e rotinas normais. Todos estão tão alegres e para mim tudo é tão estranho. Definitivamente, a alegria não me é familiar. Sei que às vezes sou cínico, defensivo, mas só por hoje me resguardarei no meu silêncio e na evasividade dos meus óculos escuros. Numa velha canção, Jorge Ben descobre que é um anjo. Eu não quero descobrir, de repente, que também sou um; só queria ter asas e poder voar para bem longe, mas não é possível. Nem morrer para mim é possível. Já morri mais de vinte e nove vezes e no dia seguinte sempre acordei na minha cama. A diferença é que ontem, depois que eu tentei jogar fora minha vida inteira, acordei numa cama de hospital.

Casa da Noélia, 31 horas e meia atrás

         Maurício põe John Coltrane pra rolar na vitrola. Escuto os primeiros chiados provocados pela agulha no vinil e me deleito numa espécie de transe. Meus movimentos parecem em câmera lenta. A luz cinza ajuda a criar o clima. A sala está cheia, mas só enxergo Maurício se aproximando. Ele me beija e com a ajuda da língua coloca em minha boca um comprimido. Mentir é muito fácil e Maurício faz isso muito bem. Prometo que acreditarei em suas mentiras esta noite -, ele sorri sem exibir os dentes. No bolso, encontro uma fotografia 3x4, mas não a saudade mais bonita. Deixo a foto ser pisoteada pelo chão. Em seguida, me entrego ao álcool e às bocas que me procuram, como se não houvesse outro dia, sem pensar . 

        Minha sede não tem fim. 
        Um cara abre uma mala sobre a mesa com drogas demais e é muito festejado. Maurício toma a frente e diz para começarem por mim, ninguém se opõe. O cara prepara calmamente uma seringa, com a precisão de um verdadeiro especialista, depois procura um local em mim para poder injetar, mas não há mais lugar para as agulhas entrarem. Sem perder a calma, ele aperta meu braço violentamente, ao perceber um vestígio de veia surgir, não desperdiça a oportunidade. Não sei o que há de errado comigo. Todos comemoram com aplausos: é a última imagem, o resto é escuridão. Será que desta vez, peguei o bonde errado e chegarei à entrada do inferno?
(...)
        Acordei no hospital vendo minha mãe com as mãos fechadas, num gesto de agradecimento, repetindo: graças a Deus, graças a Deus. Meu pai teve uma reação mais fria, queria saber como foi, quem foi, onde ele está. Voltou para o esgoto – era o que eu queria responder.

Casa da Fernanda, meio-dia
 
        O tempo fechou de uma hora para outra. “É assim nessa época do ano” -, alguém diz, não sei quem. Fernanda manda os meninos correrem, pois vai chover. Rapidamente, os pingos de chuva ganham a companhia dos relâmpagos e dos trovões. As crianças vão gritando alucinadamente, para elas tudo é diversão. O sol estava me entristecendo, não combinava com meu estado inquebrantável de espírito. A tempestade me cai bem melhor. 
        Agora, o dia está realmente perfeito.



Conto livremente inspirado na canção “Um Dia Perfeito” (Dado Villa-Lobos/ Renato Russo), da Legião Urbana, lançada no disco O DESCOBRIMENTO DO BRASIL, em 1993. Com ecos de outras vinte e oito canções.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

PARA UMA APRENDIZ DE FEITICEIRA

 "Queridos pai e mãe, obrigado pela minha infância feliz.
Vocês arruinaram toda a chance que eu tinha de me tornar escritora!"

Cartum de Alex Gregory para 
a revista americana The New Yorker

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

MEUS FILMES PREFERIDOS (DOS MEUS CINEASTAS PREFERIDOS)

Polanski e Sharon Tate  (fotografia de David Bailey)
ROMAN POLANSKI

Filho de poloneses, Roman Polanski nasceu em Paris, em 1933, com o nome de Rajmund Liebling. Pouco antes do holocausto, a sua família, lamentavelmente, resolveu retornar à Polônia - resultando na morte de sua mãe num campo de concentração. Polanski conseguiu evitar a prisão e escapou do Gueto de Cracóvia, vivendo esse período se escondendo em diversos lugares. Com o fim da guerra, concluiu seus estudos na escola de cinema de Lódz, na Polônia. Produziu alguns curtas antes do seu primeiro longa-metragem em 1962,  A Faca na Água, que foi bem recebido pela crítica mundial e o lançou numa bem sucedida carreira internacional.



A FACA NA ÁGUA (Nóz w wodzie, 1962)
Estreia de Polanski, acompanha 24 horas da vida de um entediado casal urbano que quase atropela um jovem numa estrada e acaba oferecendo uma carona para o rapaz, convidando-o a passar o dia velejando, e usando-o em seus jogos. O filme teve grande destaque nos EUA, sendo indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e ganhando uma surpreendente capa da revista Time (curiosamente o Ministério da Cultura da Polônia recusou o filme devido a “falta de compromisso social”, provavelmente por ser um trabalho que não abordava os horrores da guerra). O ambiente claustrofóbico vivido no barco seria retomado em outras obras do diretor.

REPULSA AO SEXO (Repulsion, 1965)
Carol Ledoux (Catherine Deneuve) é uma mulher tímida que trabalha como manicure em um salão de beleza londrino. Sua beleza desperta a atenção dos homens ao seu redor, embora ela seja sexualmente reprimida. Sozinha em casa após a viagem de duas semanas da irmã, Carol entra numa paranóia aterrorizante, com direiro a mãos que surgem da parede, cenas mudas de estupro e um coelho apodrecendo. O passado da protagonista não é desenvolvido, mas a imagem final é sintomática. Primeira parte da suposta “trilogia do apartamento” (que ainda inclui “O Bebê de Rosemary” e “O Inquilino”).


O BEBÊ DE ROSEMARY (Rosemary's Baby, 1968)
Um dos melhores suspense (ou terror) de todos os tempos marca a estreia de Polanski em Hollywood. Rosemary (Mia Farrow) e seu marido (John Cassavetes), um ambicioso e mal sucedido ator, mudam-se para um apartamento em Nova York, onde conhecem um invasivo casal de idosos que mora ao lado. Após Rosemary engravidar em circunstâncias inusitadas, sua gravidez será cercada por excessivos e estranhos cuidados de todos que a cercam, até ela desconfiar que existe algo muito sinistro em tudo isso. Sem assustar gratuitamente, o filme ainda surpreende. 


CHINATOWN (1974)
Jack Nicholson é J.J. Gittes, um detetive particular especializado em casos matrimoniais na Los Angeles dos anos 30. Contratado por uma misteriosa mulher da alta sociedade para investigar o marido dela, ele se vê envolvido numa trama bem mais complexa que mera infidelidade. Gangsteres, corrupção, assassinatos e incesto fazem parte de uma sucessão de reviravoltas,  favorecidas pelo acentuado clima noir, em  um dos melhores roteiros da história do cinema. Recebeu o Globo de Ouro de melhor filme dramático, melhor diretor e melhor ator para Jack Nicholson, além do Oscar de roteiro original.
Roman Polanski faz um divertida (?) participação como “o homem com a faca”. 


O INQUILINO (Le Locataire, 1976)
Terceira e última parte da, suposta, “Trilogia do Apartamento”, é, certamente, o mais injustiçado trabalho do diretor. O próprio Polanski interpreta o kafkiano Trelkovsky (um polonês, funcionário de repartição, que vive em Paris) neste instigante thriller psicológico. Afetado pelo suicídio da desconhecida e ex-locatária do seu apartamento, Trelkovsky passa a vestir as roupas abandonadas e a assumir aos poucos a personalidade dela, acreditando que os hábitos suspeitos dos seus vizinhos, num antigo e estranho edifício residencial, levaram-na à loucura e que agora eles estão fazendo o mesmo consigo. Seria ela a verdadeira “inquilina” em sua cabeça ou ele o “inquilino” na cabeça dela? O desfecho cíclico oferece vários entendimentos. Aqui, o desgastado adjetivo hitchcockiano nunca soa leviano.



Poderiam ter feito parte desta lista:
“Armadilha do Destino (Cul-de-Sac, 1966), A Morte e a Donzela (Death and the Maiden, 1994) 
e O Pianista (Le Pianiste, 2002).

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

PORQUE VI SIMÃO DO DESERTO

Já expliquei AQUI que o título deste blogue faz uma explícita referência ao cineasta Joaquim Pedro de Andrade e sua célebre resposta à pergunta “por que você faz cinema?”, que ganhou, inclusive, uma canção da Adriana Calcanhoto. Entre suas geniais enumerações, ele afirma que um dos motivos para exercer o seu ofício é por ter visto “SIMÃO DO DESERTO”,  produção mexicana de 1965, do diretor espanhol Luis Buñuel. O filme é baseado na história de Simeon Stylites (Simeão Estilita), que viveu na Síria no século V e permaneceu no topo de uma coluna a pregar por quase quarenta anos.  "Santos do Pilar" (em grego: stylos - "pilar") eram ascetas cristãos muito comuns nos primeiros anos do Império Bizantino, que acreditavam que a automortificação do corpo físico asseguraria a salvação de suas almas. Pouco popular no Brasil, Simeão é considerado santo pela Igreja Católica.
          Na obra de Buñuel, Simão leva uma vida austera no alto de sua coluna: reza, jejua, penitencia-se e é constantemente tentado pelo diabo (que surge com as mais diversas formas). Seus milagres são vistos de maneira banal pela população local, que se alterna entre adoradores e detratores, principalmente por ele ditar regras de conduta. Após inúmeros embates, o diabo o leva até aos anos de 1960, numa boate de Nova Iorque, onde Simão, com a barba aparada e bem vestido, acompanha com enfado a performance de uma banda de rock.
           O diretor critica com ironia o fanatismo religioso, um tema delicado, mas abordado sutilmente. A metade do orçamento que havia sido lhe prometido não permitiu que ele filmasse tudo que desejava: uma cena que deveria ter mil figurantes não passou de oitenta, a coluna de dezoito metros reduziu-se a uma de oito, a ideia das moscas que sobrevoariam a barba de Simão foi recusada pelo produtor. Por todas as limitações impostas, o filme não alcançou sequer uma hora de duração. O próprio Buñuel acreditava que se tivessem lhe dado mais recursos, talvez tivesse realizado a sua obra-prima, no entanto a precariedade é exatamente um dos elementos que mais fortalece a película, juntamente com a paisagem repetitiva do deserto, a fotografia em preto e branco e a ausência de uma trama convencional (com origem, motivação e conclusão). Premiado no Festival de Veneza em 1965, SIMÃO DO DESERTO é um filme cada vez mais atual e obrigatório.
          Não sei se eu faria cinema por ter visto SIMÃO DO DESERTO, provavelmente eu teria uma reação contrária e desistiria de qualquer pretensão. Não me sentiria capaz de realizar nada semelhante. Mas Joaquim Pedro de Andrade não tem o seu nome entre os maiores do nosso cinema por mero capricho do acaso.

Pode-se assistir ao filme completo AQUI



terça-feira, 4 de outubro de 2011

SEVERINA

            Acho que eu devia ter nove anos quando minha mãe me segurou na cama para que meu pai abusasse de mim pela primeira vez. Não a culpei, sabia que ela precisava viver sem a brutalidade dele, mesmo que o preço para isso fosse a minha inocência. Durante mais de vinte anos foi assim, mas nunca me acostumei com aquilo, até me matar eu quis.
           Meu pai não me deixava frequentar as aulas da professora Irene, como as outras crianças, nem brincar ou sair sozinha por aí. Era da roça pra casa, sempre sob o teu cabresto. Fugir, tentei muito, só que ele me encontrava toda mão, que nem rês desgarrada, e me batia cada vez mais e me estuprava ainda mais. Barriga eu peguei doze, somente cinco vingaram.
           Todo mundo sabia o que acontecia dentro da nossa casa: a vizinhança, a família, e ninguém fazia nada. Meu pai era homem violento, temido na região, não havia quem bulisse com ele. Só uma vez eu não tive medo: quando ele quis que eu fizesse com minha menina mais nova o mesmo que a mãe fez comigo. Mas isso ele não ia fazer de jeito nenhum, no que dependesse de mim na minha filha ele não tocava a mão. Por causa da minha recusa, fui espancada três dias seguidos: apanhei muito, mas não me curvei. No último dia ele fez questão de amolar uma peixeira de 12 polegadas na minha frente, disse que era pra mim, que quando ele voltasse da feira ia me ensinar uma lição - ele só não imaginava quem acabaria naquela faca.
           Na oportunidade que tive, dei oitocentos reais pro Galego mandar aquele infeliz pro inferno. Não era o que eu queria fazer, nunca foi, só que não tinha outra escolha. Galego nem estranhou o pedido, era como se já estivesse esperando, acho até que ele ficou feliz com o serviço, muita gente ficaria.
***
           Fiquei mais de um ano presa sem me arrepender do que fiz. Que Deus me perdoe, mas a  minha consciência eu trazia tranquila. Quando o juiz disse que eu era mulher livre outra vez, nem consegui acreditar que eu ia poder cuidar dos meus filhos, da minha lida.
           Já apareceu gente me procurando pra fazer filme disso tudo, mas eu não tenho cabeça pra essas coisas. Já perdi vida demais, agora eu quero começar a sonhar.

Poderia ser ficção, mas é realidade:
MULHER QUE MANDOU MATAR PAI É ABSOLVIDA EM RECIFE

sábado, 1 de outubro de 2011

BAHÊA MINHA VIDA

FOTOGRAFIA FÁBIO BITO TELES
As salas (arquibancadas) do cinema pareciam estádios de futebol, espectadores  devidamente uniformizados, com bandeiras, cantos, euforia: foi a estreia do esperado documentário BAHÊA MINHA VIDA, de Márcio Cavalcante. Com mais ingressos vendidos no seu primeiro final de semana em Salvador do que o episódio final da série HARRY POTTER, o filme levou aos cinemas uma multidão de apaixonados, que fizeram filas enormes nos cinemas da cidade, sem perder a vibração um só instante. Provavelmente, muita gente não entenderá essa paixão. Mas a ideia é realmente essa: o inexplicável. Os depoimentos dos jornalistas, ex-jogadores e artistas somam-se à força das palavras dos seus torcedores anônimos durante os cem minutos de exibição, que emociona em muitas partes, principalmente no reencontro dos campeões nacionais de 1959, “em cima do Santos de Pelé” - imagens espetaculares dessa conquista fará a alegria de qualquer admirador do futebol (arrepia os aplausos da plateia para o golaço de Alencar, que muitos apenas tinham ouvido falar, e o uníssono de “Bora, Baêa” para gols antológicos). O título brasileiro de 1988, da “elegância sutil de Bobô”, sua história vitoriosa, seus dramas (que não são poucos), tudo está lá. Mas o protagonista é mesmo o amor pelo clube, algo que vai muito além do mero fanatismo. Ao final, dezenas de pessoas de todas as idades saíram chorando e aplaudindo, contagiando ainda mais quem esperava a próxima sessão.  Em breve, em todo o Brasil.

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