Casa da Fernanda, 11:15 da manhã
As crianças passam correndo por mim, em mais uma de suas inventivas brincadeiras. Quando eu era criança, costumava inventar muitas, mas não saía correndo por aí, somente inventava. Sentado na varanda, o sol já começa a alcançar minhas pernas brancas, logo terei que entrar. Marianne, Natália e Leila me fazem companhia, elas são discretas e não tocam no assunto, apenas falam bobagens sobre os homens que tentam sem sucesso acender a churrasqueira no jardim -, e riem bastante, até parece ensaiado.
O cachorro-quente na casa da Fê já é quase uma tradição, há muita gente que eu não conheço, fazia tempo que eu não vinha. Admito que eu precisava respirar um pouco, encontrar pessoas normais, com vidas normais e rotinas normais. Todos estão tão alegres e para mim tudo é tão estranho. Definitivamente, a alegria não me é familiar. Sei que às vezes sou cínico, defensivo, mas só por hoje me resguardarei no meu silêncio e na evasividade dos meus óculos escuros. Numa velha canção, Jorge Ben descobre que é um anjo. Eu não quero descobrir, de repente, que também sou um; só queria ter asas e poder voar para bem longe, mas não é possível. Nem morrer para mim é possível. Já morri mais de vinte e nove vezes e no dia seguinte sempre acordei na minha cama. A diferença é que ontem, depois que eu tentei jogar fora minha vida inteira, acordei numa cama de hospital.
Casa da Noélia, 31 horas e meia atrás
Maurício põe John Coltrane pra rolar na vitrola. Escuto os primeiros chiados provocados pela agulha no vinil e me deleito numa espécie de transe. Meus movimentos parecem em câmera lenta. A luz cinza ajuda a criar o clima. A sala está cheia, mas só enxergo Maurício se aproximando. Ele me beija e com a ajuda da língua coloca em minha boca um comprimido. Mentir é muito fácil e Maurício faz isso muito bem. Prometo que acreditarei em suas mentiras esta noite -, ele sorri sem exibir os dentes. No bolso, encontro uma fotografia 3x4, mas não a saudade mais bonita. Deixo a foto ser pisoteada pelo chão. Em seguida, me entrego ao álcool e às bocas que me procuram, como se não houvesse outro dia, sem pensar .
Minha sede não tem fim.
Casa da Noélia, 31 horas e meia atrás
Maurício põe John Coltrane pra rolar na vitrola. Escuto os primeiros chiados provocados pela agulha no vinil e me deleito numa espécie de transe. Meus movimentos parecem em câmera lenta. A luz cinza ajuda a criar o clima. A sala está cheia, mas só enxergo Maurício se aproximando. Ele me beija e com a ajuda da língua coloca em minha boca um comprimido. Mentir é muito fácil e Maurício faz isso muito bem. Prometo que acreditarei em suas mentiras esta noite -, ele sorri sem exibir os dentes. No bolso, encontro uma fotografia 3x4, mas não a saudade mais bonita. Deixo a foto ser pisoteada pelo chão. Em seguida, me entrego ao álcool e às bocas que me procuram, como se não houvesse outro dia, sem pensar .
Minha sede não tem fim.
Um cara abre uma mala sobre a mesa com drogas demais e é muito festejado. Maurício toma a frente e diz para começarem por mim, ninguém se opõe. O cara prepara calmamente uma seringa, com a precisão de um verdadeiro especialista, depois procura um local em mim para poder injetar, mas não há mais lugar para as agulhas entrarem. Sem perder a calma, ele aperta meu braço violentamente, ao perceber um vestígio de veia surgir, não desperdiça a oportunidade. Não sei o que há de errado comigo. Todos comemoram com aplausos: é a última imagem, o resto é escuridão. Será que desta vez, peguei o bonde errado e chegarei à entrada do inferno?
(...)
Acordei no hospital vendo minha mãe com as mãos fechadas, num gesto de agradecimento, repetindo: graças a Deus, graças a Deus. Meu pai teve uma reação mais fria, queria saber como foi, quem foi, onde ele está. Voltou para o esgoto – era o que eu queria responder.
Casa da Fernanda, meio-dia
Casa da Fernanda, meio-dia
O tempo fechou de uma hora para outra. “É assim nessa época do ano” -, alguém diz, não sei quem. Fernanda manda os meninos correrem, pois vai chover. Rapidamente, os pingos de chuva ganham a companhia dos relâmpagos e dos trovões. As crianças vão gritando alucinadamente, para elas tudo é diversão. O sol estava me entristecendo, não combinava com meu estado inquebrantável de espírito. A tempestade me cai bem melhor.
Agora, o dia está realmente perfeito.
Agora, o dia está realmente perfeito.
Conto livremente inspirado na canção “Um Dia Perfeito” (Dado Villa-Lobos/ Renato Russo), da Legião Urbana, lançada no disco O DESCOBRIMENTO DO BRASIL, em 1993. Com ecos de outras vinte e oito canções.