domingo, 27 de abril de 2025

CAIXA DE SAPATOS

Reencontrei, embora nem mesmo lembrasse que existia, uma caixa com antigos retratos, cartas, cartões, k7s, bilhetes, canhotos, recortes, embalagens e promessas. “Hoje eu joguei tanta coisa fora”, mas resta sempre algo no caminho. O meu passado não passa por mim, senta do meu lado, faz companhia, abre portais para realidades paralelas em que me vejo, mas não me reconheço. A casa não existe mais, são ruínas ou novas construções em que demoro a identificar o local, se era ali mesmo ou um pouco mais adiante, nunca tenho certeza. Um jovem casal de namorados atravessa a noite da cidade, conversam sobre canções e protelam o futuro (“as ruas desse lugar conhecem bem”). Sessões de velhos filmes italianos em algum cinema do centro resistirá ao clichê daquela tarde chuvosa. Suspiro sem sentimentalismos, enquanto guardo a caixa em algum canto do armário de sapatos, talvez eu a reencontre em algumas décadas e surpreso, pense: nem lembrava mais que ela existia. 



Poderia ser uma playlist, mas são apenas referências esparsas 

Tendo a Lua (Herbert Vianna/ Tetê Tillet)
Dublê de Corpo (Leoni/ Lulu Martin)
Minha Casa (Zeca Baleiro)
As Noites (Samuel Rosa/ Chico Amaral)
Mundo Perfeito (Nei Van Soria)
Aniversário (Roberto Mendes/Ana Basbaum)

quinta-feira, 3 de abril de 2025

UMA PLAYLIST PARA O MEU FUNERAL

Sempre escutei, em tom de anedota, que um sinal de que estamos ficando velhos é ir a funerais com frequência – como se fosse necessário sepultar amigos e familiares para confirmar isso. Uma vez que, obviamente, tenho envelhecido, o cemitério passou a ser um local que visito bem mais do que eu imaginava que seria depois dos quarenta, essa república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus não dá uma trégua. Nas cerimônias de cremação o uso de música faz parte do protocolo, talvez para expressar a personalidade do falecido, uma mera homenagem ou simplesmente para tornar o ambiente e o ritual menos desagradáveis. Não é nem um pouco difícil me imaginar deitado num caixão que vai descendo lentamente até desaparecer dos olhos lacrimosos da audiência. Uma canção que costuma apresentar-se nesse instante é “Naquela Mesa” na voz inadjetivável de Nelson Gonçalves. A canção de Sérgio Bittencourt, composta para seu pai Jacob do Bandolim, é deveras comovente. A imagem de um senhor alegre e contador de histórias é quase palpável. Mas aquele cara na mesa não sou eu. Gosto bastante de música para permitir que em um momento de apreensão o responsável pelos procedimentos do meu funeral responda para o funcionário do crematório: “pode colocar qualquer música”. Espero dar o mínimo de trabalho possível quando eu morrer, deixar tudo pago e até a playlist que vai tocar no modo aleatório durante minha cremação. 


sexta-feira, 28 de março de 2025

NAVIO MERCANTE

Há muito escritor ruim sendo publicado. Até aí nenhuma novidade, sempre foi assim. A diferença é que agora eles sabem se vender. Não adianta apenas ser escritor, é preciso dizer, principalmente para aqueles possíveis compradores do seu livro, acumulados numericamente na aba de seguidores, que você é um escritor – como produtos na prateleira do supermercado que não são o que aparentam ser. Não quero dar a entender que envelheci mal, na verdade sou até entusiasta de mídias sociais, só não me peçam para alimentar com migalhas de dopamina quem ousar acompanhar minha rotina em reels e stories opinando sobre a polêmica do momento ou humor com trends banais ou check-in de todo local que piso. Não, não me peçam isso; logo eu que não passo de um escritor ruim que não sabe se vender além de reclamar em uma rede social que ninguém acessa.

 

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