segunda-feira, 4 de outubro de 2010

ZUCKERMAN X BARTLEBY

Sempre preferi o factóide ao fato, a inverossimilhança à realidade, a fantasia ao documentário. Sempre fui o último no telefone sem fio, sempre fui ludibriado pelas aparências. Por isso, costumo me irritar quando ignoram meu mérito de ficcionista, quando confundem o criador com a criatura, o contista com o cronista – e, ultimamente, isso tem sido cada vez mais comum. Nem tudo que eu escrevo é fruto das minhas experiências, das minhas observações do mundo. Além do ocorrido, há o imaginado.
          Já perdi a conta de quantas vezes me perguntaram sobre situações e personagens, como se tivessem acontecido comigo, como se fossem eu. Sinto a decepção no olhar dessa parcela de leitores quando respondo contrariado que nunca fui preso, nunca fiz programa com travestis, nunca fui travesti, nunca sofri uma overdose, nunca trabalhei para o tráfico, nunca fraudei documentos para fugir do país, nunca testemunhei uma chacina, nunca morei nas ruas ou numa tribo indígena, nem sou jornalista, estudante de veterinária ou tive um cãozinho chamado Sabido. Uma explicação pouco convincente, talvez seja porque construo quase todos os meus contos em primeira pessoa, o que gera certa cumplicidade e aproxima mais a ação do leitor. No entanto, isso está distante de ser uma característica de estilo ou artimanha, é apenas resultado da minha inabilidade em desenvolver satisfatoriamente textos em terceira pessoa. Parece desnecessário dizer, mas a minha biografia não está nos meus livros.
          Algumas pessoas se aproximam de mim achando que sou “diferente”, “especial”, que o meu coloquialismo é poesia vinte e cinco horas por dia, que a minha vida é repleta de histórias absurdas e divertidas. Não sou nenhum super-homem, sou um humano que erra, chora, sonha, atrasa as contas, esquece, se arrepende, pede desculpas. Citando Lulu Santos: “não leve o personagem pra cama, pode acabar sendo fatal”. É possível que essas pessoas sofram da Síndrome de Zuckerman, que segundo Rubem Fonseca, em DIÁRIO DE UM FESCENINO, é um mal que acomete os leitores e os faz pensar que autor e personagem sejam uma coisa só. (Nathan Zuckerman é o protagonista de diversos livros do romancista norte-americano Philip Roth. Após publicar um livro, Zuckerman é perseguido pelos leitores, que acreditam que tudo que ele escreveu se refere aos seus amigos ou parentes). Melhor seria que fosse diagnosticada em mim, por uma equipe de questionáveis especialistas, a Síndrome de Bartleby, que é quando os autores deixam de produzir novas obras, e excluísse meu blog, me mudasse para uma ilha ou me isolasse definitivamente no meu apartamento.
          Somente agora, compreendo porque as telenovelas avisam ao final do capítulo que “essa é uma obra de ficção”. Poderia ter usado artifício similar desde o começo, em Santo Amaro. Hoje, seria reconhecido pelo que realmente sou. E seria mais infeliz.

35 comentários:

  1. Essa confusão é um tanto quanto estarrecedora. Mais visivel ainda em atores e novelas. Pobres dos vilões que chegam a sofrer certos atentados e ouvir desaforos aos gritos quando caminham nas ruas. Se tratando de palavras, o uso do eu lirico não é algo muito perceptivel a maioria das pessoas. Prefere se crer que aquela criatividade e força de expressão é muito mais originaria de uma experiencia pessoal do que imaginação, como se subconscientemente a pessoa afirmasse para si que por talvez não ter a capacidade de se imaginar naquela situação, o escritor só o fez por ter vivenciado aquilo. Isso tbm me incomoda como blogueiro.

    Meu Blog a quem quiser visitar:

    http://codignolle.blogspot.com

    Meu Twitter a quem tiver:

    http://twitter.com/guicodignolle

    o/

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  2. Herculano, claro que você não é o que os leitores querem que você seja, mas, sem dúvida alguma, você é uma pessoa diferente.

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  3. Ossos do ofício.

    Diário de um fescenino: bom livro.

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  4. Não tenho nada a adicionar pois ainda estou tentando aprendo o que é ser um escritor de verdade.
    Mas creio que certas coisas é bom que se tenha vivido, para um melhor descrição em detalhes (além do seu enriquecimento pessoal), enquanto outras coisas como travestis, tráfico e chacinas, dá para descrever sem de fato, ter vivido tudo isso.
    Mas compreendo esse estado de despersonalização, e imagino, que o teu sentimento, seja um tanto deprimente. Embora acima de todos os seus personagens está: você!

    abraços

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  5. E é isso mesmo.

    ontem mesmo uma mulher comentou pra mim: eu queria saber quem é o cara por trás da Mina do Cara...

    Logo no título lembrei do livro citado.

    um abraço

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  6. Acho que desde o começo compreendi que vc era um escritor(Pelo menos aqui em casa quando falo de vc te trato assim..), gosto do que escreve e perdoe os que não entende e que escreve com tamanha verdade que parece que passou pelo que escreve e não só imaginou..Pense niso..Vc é bom ! Bju!

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  7. rsrsrsrs.... Muito bom Herculano. Mas embora você não seja todos esses personagens que escreve, como autor, você acaba vivenciando, pelo menos no imaginário, essas outras tantas pessoas, o que deve ser muito bom pra dar um tapa nesta monotonia que, às vezes, é a vida.

    Mas de qualquer forma, é sempre bom deixar as coisas esclarecidas...rsrs E por favor, você escreve muito bem, então nada de síndrome de Bartleby!!!

    Abçs!

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  8. Sempre é bom lembrar aos leitores: ideias consuma sem moderação, apenas as questione. Personagens: cuidado com a platonização.

    Bah, muito bom teu blog guri.

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  9. Também me sinto projetada às vezes.
    Eu não sou ficcionista. Tenho uma limitação bem maior que a sua porque só escrevo sobre coisas que de alguma maneira estão relacionadas comigo, com as minhas experiências pessoais.
    E eu sinto que as pessoas que chegam a mim através do blog esperam conhecer uma sujeita que não existe, que é só fruto da interpretação delas sobre as coisas que eu escrevo.
    Aí se decepcionam.
    Mas isso só é ruim mesmo na vida prática, teoricamente isso quer dizer que o que eu escrevo é realista, eu acho.

    Adorei a imagem, se encaixou perfeitamente.

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  10. Herculano, meu filho. Creio que voce se superou nessa crônica/desabafo cheia de humor e tensão. "Sempre preferi o factoide ao fato" ou "sempre fui o último no telefone sem fio" são passagens interessantissimas. Com certeza, alem do ocorrido há o imaginado. Já passei por Bartleby e voltei menos proficuo, por Zuckerman passo todos os dias, já me acostumei. A imagem que escolheu para ilustrar a postagem é de uma síntese impressionante, porém o final é a cereja do bolo: mesmo se queixando dos leitores, admite que seria mais infeliz se assim não fosse.

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  11. calma fico com Vital Farias: " e ninguém nem pecebia que o real a fantasia se sepram no final"

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  12. Isso acontece sempre.
    Feliz ou infelizmente, não sei discernir.

    Talvez seja pela vontade de se transformar em personagem e deixar de vez esse mundo de realidades absurdas, ou apenas aconteça porque, no fundo, nós somos covardes, gostamos do que é capaz de fazer o escândalo interior.

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  13. Impecável! Mas sabe, Neto, narrar na primeira pessoa pode até facilitar a confusão, mas não creio que seja - apenas - isto. Talvez esta transferência e atribuição, seja um ônus da interação em blogs.
    (um efeito colateral - reações adversas de uma droga e que constam na bula) O contexto nético perpassa o real e o virtual, e a ficção toma vulto e status de realidade. O leitor dialoga com o autor como se tudo aquilo fosse Ele e dele, e não simplesmente as personagens dos textos.

    É chato, mas sigamos.

    grande abraço

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  14. O coment do Passional é tão perfeito qto seu desabafo ...

    parabéns aos dois

    bjux

    ;-)

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  15. Tenso?

    Vc nunca foi travesti, mas e daí seus textos são o que são e é por issso que eu gosto deles.

    Paz!

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  16. rsrsrsr, que bom que vc esclareceu que a prosa não se refere a um clássico! Eu estava procurando o resultado.

    Ok, verdade, entendi, tenho até que confessar que acredito que tudo que se escreve, tem um fundo que, se não de verdade, de sonho do ecritor. Que não deixa de ser verdade.

    Mas o que me pegou mesmo, foi o fato de vc dizer que seria mais feliz na sua cidade, se tivesse explicado que tudo era ficção. Tá pegando algo por aí?

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  17. Poxa, Herculano! Poxa, Herculano!
    Não és nada disso e nem daquilo? E agora, como fico, com qual imagem eu vou conviver agora? Como vou viver com outra imagem sua que eu ainda nem construí?

    Agora a sério, eu sempre acreditei que os comentários é que sejam/são (muito mais) na primeira pessoa. Inferimos a partir das nossas experiências, conhecimentos, vivências, sentimentos, construções.
    Considero a escrita, como um ato criativo, ainda que baseado em fatos e realidades, nunca é a transcrição (fiel) do real.
    Embora tenham momentos em que a realidade é tão bizarra, que mais parece ficção.

    Abraço.

    ;)

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  18. fodam-se as separações...o melhor é amalgamar tudo e pronto: um artista. o que definiríamos como real? tudo isso é verdadeiro, ao menos...rsrs

    ei, agradeço vc lá...adoro onde nasceu...caê caê...cada pessoa linda vem de lá.

    gostei daqui.

    besitos

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  19. Se tal o conforta, fique sabendo que é recorrente esse tipo de perguntas. Também mas fazem...
    Que havemos de fazer?
    Somos uma espécie de gato: temos sete (ou mais!) vidas.

    Abraço
    João

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  20. A necessidade de ver o imaginário no real acalenta a falta daquele que o lê.
    E por ver-se desnudo por palavras tuas, caro cronista, acredita-te como cúmplice das próprias feridas expostas, isto basta para querer ver-te como protagonista em primeiro plano, e fugir das própria dores.
    Gosto do que leio por aqui. Exprime em palavras maior sentimento que dicionário algum pudesse acomodar.
    E o que vale num texto exposto, para quem o escreveu, já lhe serviu terapeuticamente; ao que vai ler, significá-lo-á segundo a sua própria falta.

    Receio dizer-te, mas creio que as palavras não te deixarão calar, por mais que tu queiras, ela persistirão a pulsar em tuas mãos.

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  21. Opa Tudo bem ?
    Dando uma visita (espero retribuicao rs) :D
    Muito bom seu Texto .

    Abraço .

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  22. Isso já aconteceu comigo apesar de não ser la grande escritora ou poetisa. Acontece quem escreve em primeira pessoa, escreve com mais sentimento como se estivesse vivido aquele momento, mesmo que seja só uma historia, só um fato, um sonho ou fruto de imaginação é o fruto de eu-líricos que temos a colher, o preço a se pagar, gera confusão ao leitor.

    Até pouco tempo não entendia porque autores precisava de pseudônimos, hoje entendo perfeitamente porque, ele é uma forma, ou solução para a criação de um personagem para que ninguém misture nossa vida particular como nossas historias fictícias.

    Diria mais: É complicado.


    Beijo

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  23. No começo, quando comecei a "navegar' pelas ondas da net me divertia com isso. hoje confesso que as vezes me aborreço. Mas é assim!!!!!!!!
    As pessoas jungam o que veem e não o que sabem ou deveriam saber...

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  24. Este blog me aprisionou por horas, Herculano.

    Conquistou uma nova seguidora: Marília Marques, escritora do
    www.fecheaspas.blogspot.com

    Inté a próxima visita.

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  25. Adoprei o texto, é muito interessante!
    "Quem sou eu".
    Parabéns pelo blog!
    Beijinhos!

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  26. Olha, olha o poeta fingidor que finge tão perfeitamente que chega a fingir que eh dor... a dor que deveras sente!

    Não se desespere!

    Grande abraço!!

    ^^

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  27. Fantástico...você pode acrescentar também, que lê a alma das pessoas...
    Este sentimento é compartilhado por muitos. Quem escreve, e bem, geralmente é questionado assim. A verdade é que o conteúdo está tão bom,que torna-se real ao imaginário alheio.Faz parte!

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  28. Herculano, sério mesmo que vc pensa assim???!! Ou foi só a taxa de acúcar que baixou e vc desabafou?!
    Vc pode ser vc, o escritor, o louco, o mentiroso, o homem ... muito mais coisas que nem Zuckerman, nem Bartleby imaginam ...

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  29. Toda vez que eu leio o título do seu blog, respondo: não sei!
    Automaticamente.

    Beijos

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  30. Oi,
    Sou alguém que conheceu o inferno das drogas, que fez alicerce e morada nesse lugar. Sofri todos os horrores, ou boa parte deles e hoje me encontro limpa, sem drogas, mas consciente que tenho uma doença, sem cura, progressiva e fatal. Não tenho um intuito específico escrevendo isso, sou apenas mais uma com vontade de colocar pra fora todos os bichos da minha história.

    http://vidadeumaexd.blogspot.com/

    Obrigada

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  31. Hua, kkk, ha, ha, eu acabou sendo um destes que confunde autor e obra...

    Hua, kkk, ha, ha, por isto desculpa =P

    Se o que escreve é feito a partir das tuas observações também não quer dizer que está escrevendo sobre a tua vida, a pois o conceito não encerra apenas o que houve com o meu "eu", mas sim também o que o meu "eu" pensou e chegou a conclusão.

    Fique com Deus, menino Herculano.
    Um abraço.

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  32. Adorei este texto. Vc já leu o livro de Enrique Vila-Matta?

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  33. Chato mesmo quando confundem autor x narrador, poeta x eu-poético. Não sou tão questionada em relação ao que escrevo, como você disse acontecer contigo, mas sendo professora de Literatura, lido muito com essa confusão na mente dos meus alunos. Abraço, Herculano.

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  34. Ai gostei muito!Ficou engraçado na verdade.Um pedido, sei lá.Muito bom..rsrs

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