sexta-feira, 30 de outubro de 2009

VOO ABORTADO

Nasci em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, onde a prática da capoeira é muito forte e comum. Lá todo mundo conhece ou tem uma história para contar sobre as façanhas do lendário capoeirista Besouro Mangangá. Durante a infância a figura de Besouro povoava meu imaginário das mais diversas formas: suas habilidades e feitos no começo do século passado, a se esquivar de balas no melhor estilo pré-Matrix, saltos e golpes mirabolantes a lutar contra os resquícios escravocratas, desbancando homens armados. Um heroi alcançável, símbolo de coragem e valentia, que ia além dos uniformizados dos quadrinhos e tv. Com tantas imagens cultivadas na memória acessei, como milhares de pessoas fizeram, ao trailer do filme no YouTube (mais de uma vez), afinal o mito local havia ultrapassado os limites do folclore e chegado à tela do cinema com uma arte marcial popular e pouco explorada e lutas coreografadas pelo chinês Huen Chiu Ku (de “Kill Bill” e “O Tigre e o Dragão”). Assim resolvi encarar a sessão de estreia do filme, curiosamente havia um público jovem, historicamente preconceituoso e reticente ao cinema brasileiro, porém tive as expectativas frustradas ao me deparar com uma obra cinematográfica inconsistente, com pretensões visuais exageradas e diálogos didáticos que remetem às manhãs do Telecurso. Sofro de “vergonha alheia”, um mal que ainda carece de medicamentos, e acompanhar o roteiro desestruturado se apoiar num misticismo gratuito e na desgastada fórmula do triângulo amoroso, e de quebra o amadorismo do elenco e uma montagem confusa, só fez me afundar mais na poltrona. Poderia valer pela valorização do negro como protagonista de uma grande produção, mas não é suficiente para suprir as claras deficiências de um produto inacabado. “Besouro” é um dos filmes mais caros já produzidos pelo cinema nacional, boa parte dos recursos oriundos de leis de incentivo, que nem de longe se espelha no Besouro cantado nas rodas de capoeira ou o das histórias narradas pelas pessoas mais velhas de Santo Amaro, esse sim, um Besouro sem preço e emblemático, que na minha imaginação realmente avoa.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

NA BOLHA


Conheço duas pessoas, que por óbvios motivos aqui lhes poupo os nomes, que gradativamente passaram a viver numa bolha. Não literalmente, como o menino da bolha de plástico, ou como a metáfora mais corriqueira levaria a entender por isolamento social – na verdade esses indivíduos até interagem socialmente. À maneira deles criaram um universo particular onde as engrenagens funcionam perfeitamente, onde nenhum mal lhes afeta e onde eles sempre saem vencendo, sempre têm certeza. Inicialmente os classificava como “mentirosos inofensivos”, desses que abundam em qualquer repartição ou banco de praça, hoje acredito que sofram de algum transtorno psicológico que minha ignorância não sabe precisar. Eles criaram uma falsa situação de conforto da qual nem tentam se desvencilhar, se enredam mais e mais, talvez inconscientemente. Não vejo como problema imaginar lugares, pessoas e situações melhores (menos mesquinhas, mais divertidas); inconveniente é fazer da vida uma fantasia, sem distinguir mais o que é e o que não é real, e inadvertidamente trazer suas invencionices e idiossincrasias para o cotidiano, querendo que todos compactuem passivamente com seus paralelismos. Desconheço as razões e prefiro não especular sobre mentes tão complexas, só sei que ao minar as intempéries da vida, transformando o dia numa eterna masturbação, quem passa a viver numa bolha são os outros.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

VERSOS EXCLUÍDOS

versos excluídos
Herculano Neto

tenho vocação para o abismo
para o abraço
tenho fixação por detalhes
por olhares
por silêncios

sou irremediavelmente insatisfeito
displicentemente franco
o melhor amigo dos meus amigos
o melhor amante das minhas tristes

obsessivo

tenho vocação para infelizes

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

FRASCOS COMPRIMIDOS COMPRESSAS

Frascos Comprimidos Compressas é o título do segundo disco dos baianos da banda Ronei Jorge e os Ladrões de Bicicleta. Com produção esmerada de Pedro Sá, o trabalho é um alento no cenário musical da Bahia, sempre cheio de estereótipos. Seus integrantes agora parecem demonstrar mais consciência ao combinar os elementos de rock e samba, soando mais natural do que no disco anterior e consequentemente realçando as ótimas composições e arranjos -, sobretudo as letras de Ronei Jorge (já há algum tempo letrista destacado). Não faltará quem compare aos últimos discos de Caetano Veloso (“Cê” e “Zii e Zie”), apenas impressões pré-formuladas que numa audição menos preguiçosa se dissipam. Ressalto no conjunto a faixa título; a já conhecida dos fãs “Aquela Dança” – com resquicios de Novos Baianos e pré-axémusic -, além do Clube da Esquina que paira fantasticamente sobre “Está na Cara” e “Circule Seu Sangue". Ronei Jorge e os Ladrões de Bicicleta é samba, um samba desobediente, nervoso. É MPB setentista, na postura, na verve. É rock, de garagem, de guitarras, sem clichês.

Escute algumas faixas no Myspace da banda:
http://www.myspace.com/roneijorgeeosladroes

terça-feira, 13 de outubro de 2009

BASTARDOS INGLÓRIOS

Bastardos Inglórios é Quentin Tarantino de volta à grande forma num dos melhores filmes do ano (tentei não escrever no calor da hora para evitar lugares comuns como esse). Seguindo à risca a cartilha de “como produzir um cult movie”, ele nos presenteia mais uma vez com diálogos memoráveis e personagens carismáticos, como o coronel nazista Hans Landa, “o caçador de judeus”, interpretado magnificamente (também queria evitar hipérboles e superlativos) pelo ator austríaco Christoph Waltz, que deu vida a um dos maiores antagonistas de toda história do cinema (não é exagero). Tarantino divide sua obra em capítulos (até aí nenhuma novidade) para apresentar durante a 2ª Grande Guerra as trajetórias do tenente Aldo “Apache” Raine, vivido por Brad Pitt, líder dos Bastardos, um batalhão especializado em escalpelar nazistas na França ocupada por Hitler, e Shosanna, a judia que escapa de um massacre em família e se torna (sem muitas explicações plausíveis, talvez na especulada continuação) proprietária de um cinema em Paris. Com essas duas premissas o enredo caminha paralelamente até a aguardada intersecção, que culmina numa sanguinolenta sequência - que já foi o sonho politicamente incorreto de qualquer pessoa que preze a dignidade humana (não, não contei o final).

sábado, 10 de outubro de 2009

PATTY DIPHUSA

Costumo ler no ônibus, enquanto vou ao trabalho. Diferentemente dos meus colegas de viagem, que já embarcam temerosos, leio tranquilamente – sem me importar com o imprevisível. Durante duas dessas ocasiões comecei e terminei a leitura de “PATTY DIPHUSA”, do cineasta Pedro Almodóvar. Uma série de contos publicados originalmente na revista espanhola “La Luna” a partir de 1982 e copilados em livro em 1991 (ano em que filmou “De Salto Alto”). Impossível não imaginar aquelas histórias (e acredite que tentei) em película, provavelmente a trajetória da estrela pornográfica internacional Patty Diphusa por Madri não tivesse espaço no cinema de hoje (nem uma atriz como Victoria Abril como protagonista), talvez soasse demais como um Almodóvar de antigamente, o que já seria bem melhor do que suas últimas produções.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

NOTAS DE UM POEMA

O primeiro poema que consegui escrever em Salvador foi “lembranças de donzelas do tempo do Imperador”, algum tempo depois de ter me mudado, tomando emprestado como título um verso de uma canção de 1941 de Dorival Caymmi, “Você Já Foi à Bahia” (recurso semelhante utilizado por Caetano Veloso em “Terra”). Na canção, Caymmi exalta uma Salvador idealizada, nostálgica, quase folclórica; um convite à uma cidade que só conheci em cartões-postais. Em 2008 o poema fez parte do livro “CINEMA”, Prêmio Braskem Cultura e Arte, recentemente alguém apontou um parentesco com o “Poema do Beco”, de 1933, de Manuel Bandeira, que se existe não foi intencional. Enquanto Bandeira se solidarizava com a gente humilde do Rio de Janeiro, meus versos apenas expressavam o descontentamento e a solitude.

“lembranças de donzelas
do tempo do Imperador”

Herculano Neto

da janela do meu apartamento
vejo outras janelas de apartamento
janelas fechadas
cortinas
um muro
aviões

da janela do meu apartamento
eu não vejo a Bahia.

***

Poema do Beco
Manuel Bandeira

Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
- O que eu vejo é o beco.


segunda-feira, 5 de outubro de 2009

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FAÇO DO MEU BLOG PÁGINA DE DIÁRIO


Dizem por aí que ando sumido, que não telefono sequer para dizer que não vou – não sei, talvez seja verdade. Outro dia alguém perguntou como eu estava, meio intolerante respondi para ir ao meu blog. Fui deselegante não pela pergunta, aparentemente trivial, mas pelo tom maligno da voz, cheia de veneno e cinismo (impossíveis de reproduzir aqui). Resolvi então dar uma passada por meu blog para saber como eu estava, porém não encontrei nenhuma resposta fácil. Se a pessoa realmente seguiu meu conselho ficou ainda mais confusa. Já tive uma urgência muito grande, uma necessidade de transformar, de estar em todos os lugares, hoje não carrego mais utopias (meus herois morreram de overdose e meus sonhos na mesa do bar). Só quero cultivar minha paciência, regar meu bonsai toda manhã, adormecer escutando Céu no gramado do Dique do Tororó e vez ou outra pedir um conhaque de alcatrão com limão e mel pra aquecer a madrugada. “Sim, o que me importa nesse instante é esse não me importar constante” – como dizia um velho roqueiro baiano. Para quem interessar não estou longe, estou mais perto do que possam imaginar. O que eu busco não é a distância, é o encontro; mesmo que para isso eu precise hibernar.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

QUERIDA WENDY (DEAR WENDY)

Querida Wendy, Dinamarca 2005, tem direção de Thomas Vinterberg e roteiro de Lars von Trier (que abandonou a direção de Dear Wendy para se dedicar a Manderlay). No filme o jovem Dick compra por acaso um pequeno revólver e juntamente com outros “excluídos” funda um contraditório clube baseado no pacifismo e na posse de armas. Esteticamente lembra um pouco “Dogville”, principalmente a cidade Estherslope e seus peculiares habitantes, embora seja bem menos pretensioso e descontraído. Atenção especial para a excepcional trilha sonora, com clássicos do grupo inglês The Zombies.
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