sexta-feira, 31 de outubro de 2025

“A PURIFICAÇÃO NA CALADA DA NOITE PRETA”

 

Resolvi reassistir à novela  VAMP, do remoto ano de 1991 (época em que eu havia recém-adentrado na adolescência e o mundo parecia ser um lugar menos hostil). Quem sabe eu só quisesse sentir o sabor da sopa da minha mãe novamente, o pão da padaria de Seu Vadu; ouvir a urgência dos amigos que me chamavam para escarafunchar as ruas do bairro em busca de diversão. A vida como se não houvesse amanhã, mesmo que o amanhã me reservasse prova de geografia no Polivalente. No entanto, algo passou a me incomodar já nos primeiros minutos. Poderia dizer que era a ausência de atores pretos no elenco (ironicamente a personagem mais “escurinha” se chama Branca) ou que após o “estamos apresentando” aguardei pelos intervalos comercias que não vieram, apenas um imediato “voltamos a apresentar”. Mas não era nada disso. Apesar do apelo da trilha sonora essa viagem nostálgica rumo ao início dos anos 90 na Baía dos Anjos, digo, Santo Amaro da Purificação não se concretizou e acabei desembarcando durante o terceiro capítulo. Talvez porque não existisse mais a sopa com pão na hora do jantar, meus velhos e saudosos amigos, a minha mãe.

domingo, 27 de abril de 2025

CAIXA DE SAPATOS

Reencontrei, embora nem mesmo lembrasse que existia, uma caixa com antigos retratos, cartas, cartões, k7s, bilhetes, canhotos, recortes, embalagens e promessas. “Hoje eu joguei tanta coisa fora”, mas resta sempre algo no caminho. O meu passado não passa por mim, senta do meu lado, faz companhia, abre portais para realidades paralelas em que me vejo, mas não me reconheço. A casa não existe mais, são ruínas ou novas construções em que demoro a identificar o local, se era ali mesmo ou um pouco mais adiante, nunca tenho certeza. Um jovem casal de namorados atravessa a noite da cidade, conversam sobre canções e protelam o futuro (“as ruas desse lugar conhecem bem”). Sessões de velhos filmes italianos em algum cinema do centro resistirá ao clichê daquela tarde chuvosa. Suspiro sem sentimentalismos, enquanto guardo a caixa em algum canto do armário de sapatos, talvez eu a reencontre em algumas décadas e surpreso, pense: nem lembrava mais que ela existia. 



Poderia ser uma playlist, mas são apenas referências esparsas 

Tendo a Lua (Herbert Vianna/ Tetê Tillet)
Dublê de Corpo (Leoni/ Lulu Martin)
Minha Casa (Zeca Baleiro)
As Noites (Samuel Rosa/ Chico Amaral)
Mundo Perfeito (Nei Van Soria)
Aniversário (Roberto Mendes/Ana Basbaum)

quinta-feira, 3 de abril de 2025

UMA PLAYLIST PARA O MEU FUNERAL

Sempre escutei, em tom de anedota, que um sinal de que estamos ficando velhos é ir a funerais com frequência – como se fosse necessário sepultar amigos e familiares para confirmar isso. Uma vez que, obviamente, tenho envelhecido, o cemitério passou a ser um local que visito bem mais do que eu imaginava que seria depois dos quarenta, essa república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus não dá uma trégua. Nas cerimônias de cremação o uso de música faz parte do protocolo, talvez para expressar a personalidade do falecido, uma mera homenagem ou simplesmente para tornar o ambiente e o ritual menos desagradáveis. Não é nem um pouco difícil me imaginar deitado num caixão que vai descendo lentamente até desaparecer dos olhos lacrimosos da audiência. Uma canção que costuma apresentar-se nesse instante é “Naquela Mesa” na voz inadjetivável de Nelson Gonçalves. A canção de Sérgio Bittencourt, composta para seu pai Jacob do Bandolim, é deveras comovente. A imagem de um senhor alegre e contador de histórias é quase palpável. Mas aquele cara na mesa não sou eu. Gosto bastante de música para permitir que em um momento de apreensão o responsável pelos procedimentos do meu funeral responda para o funcionário do crematório: “pode colocar qualquer música”. Espero dar o mínimo de trabalho possível quando eu morrer, deixar tudo pago e até a playlist que vai tocar no modo aleatório durante minha cremação. 


sexta-feira, 28 de março de 2025

NAVIO MERCANTE

Há muito escritor ruim sendo publicado. Até aí nenhuma novidade, sempre foi assim. A diferença é que agora eles sabem se vender. Não adianta apenas ser escritor, é preciso dizer, principalmente para aqueles possíveis compradores do seu livro, acumulados numericamente na aba de seguidores, que você é um escritor – como produtos na prateleira do supermercado que não são o que aparentam ser. Não quero dar a entender que envelheci mal, na verdade sou até entusiasta de mídias sociais, só não me peçam para alimentar com migalhas de dopamina quem ousar acompanhar minha rotina em reels e stories opinando sobre a polêmica do momento ou humor com trends banais ou check-in de todo local que piso. Não, não me peçam isso; logo eu que não passo de um escritor ruim que não sabe se vender além de reclamar em uma rede social que ninguém acessa.

 

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