Quando eu era criança, costumávamos passar as férias na Ilha. Lembro-me, frequentemente, de uma louca que vivia pelas ruas, a carregar um saco de pano cheio de bonecas velhas recolhidas pela vizinhança - um cemitério ambulante de infâncias.
Entoando uma antiga canção do Roberto, as outras crianças a perturbavam diuturnamente, apenas para, após o verso “que você não vê que ele está ficando démodé”*, ouvi-la pronunciar uma variedade infinita de impropérios e atirar pedras a esmo, para a alegre e desesperada fuga de todos. Parecia ser o único divertimento do verão. Teorias pouco imaginativas, diziam que ela tinha sido professora na capital durante a juventude e tinha aversão a estrangeirismos; ou que ela enlouqueceu depois que o noivo a trocou por uma dançarina francesa de um cabaré itinerante. Na verdade, sua ingenuidade religiosa confundia “démodé” com demônio, nada mais. Queria terminar este parágrafo afirmando que ela desapareceu misteriosamente, deixando à beira-mar dezenas de cabeças de bonecas. No entanto, ela foi covardemente assassinada por um pai furioso, depois de ter acertado uma pedra na perna do seu filho.
Entoando uma antiga canção do Roberto, as outras crianças a perturbavam diuturnamente, apenas para, após o verso “que você não vê que ele está ficando démodé”*, ouvi-la pronunciar uma variedade infinita de impropérios e atirar pedras a esmo, para a alegre e desesperada fuga de todos. Parecia ser o único divertimento do verão. Teorias pouco imaginativas, diziam que ela tinha sido professora na capital durante a juventude e tinha aversão a estrangeirismos; ou que ela enlouqueceu depois que o noivo a trocou por uma dançarina francesa de um cabaré itinerante. Na verdade, sua ingenuidade religiosa confundia “démodé” com demônio, nada mais. Queria terminar este parágrafo afirmando que ela desapareceu misteriosamente, deixando à beira-mar dezenas de cabeças de bonecas. No entanto, ela foi covardemente assassinada por um pai furioso, depois de ter acertado uma pedra na perna do seu filho.
Os verões nunca mais foram os mesmos na Ilha, nem rei nem Roberto.
*CIÚME DE VOCÊ (Luiz Ayrão, 1968)
Na internet escreve-se de tudo, e sobre tudo. No entanto, poucos, poucos mesmo, conseguem extrair poesia do prosaico:
ResponderExcluir"um cemitério
ambulante de infâncias" é perfeito.
Ah, os loucos maravihosos (eu os achava) das ruas da minha infância interiorana pareciam me ensinar os primeiros passos da liberdade. Devazinho vestia-se com paletó mais que surrado e chapéu empenado, para comer (porque pedia comida nas portas) tinha que atender ao pedido inconsequente das crianças: "Recite a carta do amante de sua mulher". Enlouquecera, diziam, depois de ler uma carta que o amante manadara para a mulher. O pobre-coitado enlouqueceu sem esquecer uma linha. Reciatav chorando, e aí recebia um prato de comida. Dona Verde andava pelas ruas carregada de todos os cacarecos que encontrava (latas, chaves, restos de brinquedos, folhas, ela desaparecia dentro de um mundaréu de objetos desprezados, atirados ao lixo); Um outro, um garoto mal saído da adolescência, prendia uma antena de carro na cabeça e corria a cidade inteira imitando o som de uma buzina; um outro, recitava Casimiro de Abreu e lamentava a saudades que tinha da aurora de sua vida. Eram loucos maravilhosos e me apaixonei, então, pela loucura, sem saber ali, na inocência da minha infância, o quanto dói viver num mundo à parte. Anos depois, minha avó perdeu a memória. Não sabia quem era quem, não sabia quem era, não lembrava da ternura com que nos olhava e seus olhos perderam-ne em horizontes de pedra. A loucura doeu na minha alma. Ela morreu num sanatório e, a última vez que a vi, eu insistia em procurar um encontro de olhoraes. Mas eu já não a via mais nos seus próprios olhos. Ela nem olhava os meus. Enfim...a poesia da loucura me persegue ainda em alguma medida. Mas hoje prefiro os delírios poéticos. Bjos e um tal de 2012 que nos traga coisas boas. Muitas, se for possível.
ResponderExcluirSão poucos o que eu conheço que conseguem fazer o que você faz! Essa sua form de escrever é única!
ResponderExcluirrobertavladya.blogspot.com
...e nesse texto, voltamos a infancia...penso que todos tiveram uma louca ou louco no bairro. Tambem tenho historias e como toda criança, provoca-los nao era tido como maldade, mas brincadeira de criança...Porem, quando ultrapassam os limites da realidade, como o pai que a matou, isso vira maldade de adulto...que ao meu ver, era o verdadeiro louco, insano...o proprio "Diablo"...Argh! Adorei te ler hoje, fantastico! Abraços
ResponderExcluirFinal triste, mas texto muito bonito, cheio de poesia. Gostei. :)
ResponderExcluirMe apaixonei pelo blog! São textos muito bons.
ResponderExcluirParabéns!
Um cemitério abundante de infâncias é uma das frases mais impactantes que li em toda a minha vida. Estou a me sentir a própria bípede do caixão infantil rs
ResponderExcluirAmei, Herculano!
beijoss
....uma historia muito triste. sempre me sensibilizo quando vejo "loucos" perambulando.
ResponderExcluir[ingenuidade infantil à parte]
[contem 1 beijo]
Amigo Herculano, salve os loucos! Pois durante a minha quase longa vida, já vi vários. Por algum tempo, cheguei a pôr em xeque a minha sanidade...Brincadeiras à parte, quando somos crianças ou adolescentes, vibramos com aqueles indivíduos maluquetes. Mas o que me marcou mais em relação aos ditos doidos, aconteceu quando eu me preparava para o vestibular, lá na década de 70. Foi numa tarde em eu estudava numa praça - eu gostava de estudar ao ar livre, ainda hoje goste de ler em ambientes abertos -, quando, de repente um sujeito me pediu um cigarro - eu fumava naquele tempo -. Enquanto o cara fumava, olhou de relance o exercício de física que eu tentava assimilar, percebendo a minha dificuldade, perguntou o que estava pegando. Para resumir a história, em poucos minutos tirou minha dúvida, e através de métodos desconhecidos para mim, elucidou-me outros emaranhados que eu não estava conseguindo solucionar. Chocado, com aquela figura maltrapilha, aparentando insanidade, mas discorrendo com enorme facilidade sobre física e matemática, perguntei se ele estava representando algum papel. Então, ele disse que fizera 03 anos de engenharia, mas parara porque havia enlouquecido em consequência de uma paixão fulminante não retribuída, que tivera por uma moça casada.
ResponderExcluirUm abração. Tenhas uma ótima tarde.
Adorei o conto, na minha época de ilha, tinha um senhor que ficava na janela observando tudo, tempo depois descobrir que ele tinha morrido =(
ResponderExcluirAdorei o texto!
ResponderExcluirMe lembrou o "A Doida",de Carlos Drummond de Andrade, que mexe muito comigo quando releio por mostrar que, às vezes, tudo o que esses "loucos" precisam é de um pouco de carinho e atenção e que por trás da "loucura", existe um indivíduo, um ser humano, independente do rótulo que receba.
Beijos!
Laura :)
Gostei da narrativa, às vezes é preciso finais tristes também..
ResponderExcluirBjo :)
Nunca fui dessas crianças zombeteiras. Sempre tive pena dessas pessoas marginais.
ResponderExcluiraodoro essa música.
ResponderExcluirpor aqui teve uma moça, loca, acho que também já morreu, que ficava gritando da janela pras pessoas qeu passavam - apontando caminhos , sabe?
horrível.
as crianças jogavam pedras paus palavras
faziam musiquinhas riam, enfim.
lembro inda dói.
um beijo.
Muito BOM!
ResponderExcluirO respeito aos loucos é uma obrigação nossa. Não se sabe a causa, quando se é jovem. Para as crianças, que os pais não alertam, tudo é diversão.
Prefiro os loucos aos políticos.
Parabéns, Herculano!
Beijos
Mirze
hermoso blog, hermosas letras. bjs amiga.
ResponderExcluirHerculano, essa história me comoveu. E o demodé como demônio, bastante simples e complexo, como só o mundo dos loucos e das gentes mais simples e mágicas sabe construir.
ResponderExcluirQuanto ao seu posto de serventuário da Justiça, boa sorte. Agora você tem o computador, fica mais fácil "bater" audiência. Um abraço.
Loucos... o que seria do mundo sem eles?
ResponderExcluirEu costumava brincar de rede na garagem com meu irmão e meus primos. Tinha um velho cujo olho esquerdo (ou direito, quem sabe) era meio vermelho, e sempre quando ele passava, a gente saia correndo, com medo. Até que ele sumiu. :/
Não sei o que dizer, de tão bonito que é esse texto. Li várias vezes, cada vez como se fosse a primeira,e voltava a ler como se fosse a última.
ResponderExcluirbeijo, Herculano.
Que a felicidade te acompanhe sempre e que ela seja
ResponderExcluirsua companheira constante no decorrer desse Ano de 2012.
Sigamos avante, para o alto e com um sorriso no rosto! Paz e luz.
E já no final dessa primeira semana de Ano Novo.
Desejo um feliz e abençoado final de semana.
Vou continuar te seguindo e te amando sempre.
Beijos no coração.
Evanir
Have a Wonderful New Year!
ResponderExcluirÉ na infância que aprendemos a ser cruéis, embora na maioria das vezes, sem nenhuma consciência disso. Adultos, apenas aperfeiçoamos!
ResponderExcluirE em todo canto, há o louco do lugar!
Interessante... Uma simples história com tanta poesia em nas entrelinhas. Conseguir este feito é uma arte.
ResponderExcluirPuxa, que conto triste.
ResponderExcluirMas não deixa de ser encantador!
Um Beijo
Belíssimo conto. Poético e sombrio.
ResponderExcluirCumprimentos cinéfilos e Feliz 2012!
O Falcão Maltês
Os anos estragam tudo... até os Verões!
ResponderExcluirHerculano
ResponderExcluirMuitas vezes vejo pessoas nas ruas desta selva de pedra perambulando e falando palavras ininteligíveis ou até impropérios. Que passado teriam?
Talvez viveram lindas histórias que depois se perderam na memória?
E você viveu um fragmento da história da moça que guarda com
muita sensibildade.
Lindo. Os verões nunca mais foram os mesmos e nem o Rei.
Beijussss
Senti que o final seria triste logo que comecei a ler.
ResponderExcluirE essa feia da foto? rs...continua apaixonado por ela, né? rs...
Boa noite,
ResponderExcluirUma história tão comum aos nossos tempos, já há tanto enfatizados por loucos, insanos, ou seríamos nós os loucos e insanos? Afinal quem tirou a vida de quem?
RESPEITO uma palavra que procuro praticar sempre e com todos sem exceções!
Bjos se cuida e tenha uma linda semana, repleta de magia e regada a fantasia!
Entendo-te perfeitamente...
ResponderExcluirEmbora aqui se ouvisse Roberto...não seria tnto como aí...mas lembro com saudade!
Bj
A gente muda e, nessa mudança, muda o mundo em que vive. Adorei seu texto!
ResponderExcluirSempre fui fascinado pelos loucos das cidades. Por um lado é triste a vida miserável que levam nas ruas, mas por outro pode ser mais triste ainda a vida sem vida que levam nas instituições. Todo lugar deveria reverenciar os seus loucos.
ResponderExcluirSempre fui fascinado pelos loucos das cidades. Por um lado é triste a vida miserável que levam nas ruas, mas por outro pode ser mais triste ainda a vida sem vida que levam nas instituições. Todo lugar deveria reverenciar os seus loucos.
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