terça-feira, 26 de janeiro de 2010

MANUAL PRÁTICO DO ESCRITOR IMBERBE

Uma garota me abordou hoje no parque, enquanto eu caminhava, e me perguntou, após alguma cerimônia, sobre meu processo criativo. A pergunta não foi original, uma jornalista já havia me perguntado algo semelhante. Solícito, respondi que não possuía segredos, que apenas me dedicava, reverentemente, à leitura e à vida: quem não lê não sabe escrever, e quem não vive não tem o que escrever – mandei um aforismo. Ao desviar os olhos percebi que ela ficou decepcionada, imaginei que ela esperava algo mirabolante, uma fórmula mágica óbvia (no melhor estilo Mister M.) ou uma receita de bolo. A resposta pronta foi a mais sincera e educada que encontrei. Deselegante eu seria se dissesse que a literatura, em todas as suas vertentes, deveria ser mais respeitada e menos maculada; que gostar de livros não qualifica ninguém a ser escritor; que escrever deveria sempre ser a última alternativa, mesmo para a alma mais sensível; que o talento é inato e não faz parte do programa semestral de nenhuma faculdade; que diário não é romance e ajuntar versos não é poesia; que entre a caneta e o papel existe um oceano, para alguns o infinito; que modernidade não é sinônimo de má literatura; que só pode transgredir a gramática quem a conhece; que o escritor jamais deixa de estudar; que escrever é um peso e não dá pra arriar o balaio e descansar; que acordo cedo todas as manhãs para bater ponto num trabalho que me consome física e espiritualmente; que tenho compromissos, contas a pagar; que a literatura não coloca pão na minha mesa; que sou arrimo de família; que cozinho minha comida e lavo minha roupa; que abasteço regularmente meus parceiros musicais com letras para canções; que escrevo crônicas para jornais do interior e sites (pelas quais não recebo nenhum centavo); que atualizo meus blogs duas vezes na semana (às vezes mais); que estou escrevendo um livro infantil e outro de contos; que estou reescrevendo o roteiro esquizofrênico de um curtametragem e revisando o romance soteropolitano de um amigo; que escrever é trabalhoso, não é psicografia; que “estou sem tempo” não é justificativa para quem faz o que gosta; que nem todo escrito é publicável; que se pudesse escolher não escreveria; que não poso de celebridade em coquetéis e prefácios; que sou convidado para feiras e bienais, mas nunca me oferecem cachê; que quem precisa de reconhecimento não é o escritor, é a obra; que escrever, para mim, é muito doloroso, me extenua, me absorve, e que mesmo assim jamais será uma obrigação; que escrever é uma necessidade, um vício; que escrever não deve ser válvula de escape ou passatempo; que escrever é estar em queda-livre, num trem sem freios; que muitas vezes me sinto como a dona de casa que cuida dos filhos, do lar, trabalha, estuda e à noite tem que estar perfumada, arrumada, depilada e disponível para um sexo rápido, sem beijos ou preliminares, para um marido que não se esforça para entendê-la e que toca mais o controle-remoto do que suas pernas.
Poderia ter dito tudo isso, mas alguém nos interrompeu.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

ENTRE A RUA DIREITA E A ESTRADA DOS CARROS

entre a rua direita e
a estrada dos carros*

Herculano Neto

revendo os caras
olhando as caras
contemplando cada olho castanho
cada olhar distante
cada ser infame

sorrindo a esmo
esperando reciprocidade
dias melhores
amores menores
sonhos assim

compreendendo cada olhar castanho
cada olho distante


* SOB PRESCRIÇÃO, 2006

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

MUITO ALÉM DO JARDIM

MUITO ALÉM DO JARDIM (Being There, 1979) conta a trajetória de Chance, um jardineiro ingênuo e analfabeto que conhece o mundo apenas pelo que assiste na TV e que depois da morte do seu patrão é obrigado a se deparar com a realidade da vida externa. Interpretado genialmente por Peter Sellers, que ganhou o Globo de Ouro pelo trabalho, Chance vive uma fábula moderna com sua falta de malícia na metrópole, onde suas “metáforas” sobre jardinagem são interpretadas como lições políticas, econômicas e sociais. “Muito Além do Jardim” antecipa o culto à celebridade instantânea, ironiza o lugar de destaque que a televisão ganhou na sociedade, desconstrói mitos e a manipulação promovida pelos meios de comunicação (exemplo emblemático é quando questionado sobre jornais Chance simplesmente responde que não lê, e a repórter imediatamente anuncia para a câmera: "Muitos homens não leem jornal algum, mas apenas um teve coragem de admitir"). Todos tentam entender, sem sucesso, Chance (agentes federais, jornalistas e até o presidente americano) e esse não entender é transportado em sua célebre cena final para o espectador – que, ao querer deduzir o que aconteceu, se vê na mesma situação das demais personagens. MUITO ALÉM DO JARDIM é uma das melhores comédias de todos os tempos, refinada e sem as artimanhas desgastadas do humor físico, tudo habilmente resolvido no texto inteligente e engraçadíssimo. Seria a refilmagem certa no momento certo, mas atores como Jim Carrey, Steve Carell ou Adam Sandler (por mais que já tenham tentado) jamais encontrariam o tom e a cadência de um Peter Sellers – melhor então ficar, até que a indústria apareça, com o original.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

CAIXA-POSTAL

caixa-postal*
Herculano Neto

o meu amor é uma carta que voltou
mas o meu ódio tem endereço certo


(*POEMA PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 1999, NO FANZINE “MÃOS MORTAS”, ANTES DE INTEGRAR A ANTOLOGIA “OS OUTROS POEMAS DE QUE FALEI”, PRÊMIO BANCO CAPITAL DE LITERATURA, EM 2004.)


terça-feira, 12 de janeiro de 2010

OS OUTROS

os outros*
Herculano Neto

o sétimo selo
o sexto sentido
o quinto elemento
o quarto poder

a terceira guerra
a segunda chance
à primeira vista

o último dos moicanos


(*POEMA PUBLICADO ORIGINALMENTE NA ANTOLOGIA
"SOB PRESCRIÇÃO" EM 2006)
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