Uma garota me abordou hoje no parque, enquanto eu caminhava, e me perguntou, após alguma cerimônia, sobre meu processo criativo. A pergunta não foi original, uma jornalista já havia me perguntado algo semelhante. Solícito, respondi que não possuía segredos, que apenas me dedicava, reverentemente, à leitura e à vida: quem não lê não sabe escrever, e quem não vive não tem o que escrever – mandei um aforismo. Ao desviar os olhos percebi que ela ficou decepcionada, imaginei que ela esperava algo mirabolante, uma fórmula mágica óbvia (no melhor estilo Mister M.) ou uma receita de bolo. A resposta pronta foi a mais sincera e educada que encontrei. Deselegante eu seria se dissesse que a literatura, em todas as suas vertentes, deveria ser mais respeitada e menos maculada; que gostar de livros não qualifica ninguém a ser escritor; que escrever deveria sempre ser a última alternativa, mesmo para a alma mais sensível; que o talento é inato e não faz parte do programa semestral de nenhuma faculdade; que diário não é romance e ajuntar versos não é poesia; que entre a caneta e o papel existe um oceano, para alguns o infinito; que modernidade não é sinônimo de má literatura; que só pode transgredir a gramática quem a conhece; que o escritor jamais deixa de estudar; que escrever é um peso e não dá pra arriar o balaio e descansar; que acordo cedo todas as manhãs para bater ponto num trabalho que me consome física e espiritualmente; que tenho compromissos, contas a pagar; que a literatura não coloca pão na minha mesa; que sou arrimo de família; que cozinho minha comida e lavo minha roupa; que abasteço regularmente meus parceiros musicais com letras para canções; que escrevo crônicas para jornais do interior e sites (pelas quais não recebo nenhum centavo); que atualizo meus blogs duas vezes na semana (às vezes mais); que estou escrevendo um livro infantil e outro de contos; que estou reescrevendo o roteiro esquizofrênico de um curtametragem e revisando o romance soteropolitano de um amigo; que escrever é trabalhoso, não é psicografia; que “estou sem tempo” não é justificativa para quem faz o que gosta; que nem todo escrito é publicável; que se pudesse escolher não escreveria; que não poso de celebridade em coquetéis e prefácios; que sou convidado para feiras e bienais, mas nunca me oferecem cachê; que quem precisa de reconhecimento não é o escritor, é a obra; que escrever, para mim, é muito doloroso, me extenua, me absorve, e que mesmo assim jamais será uma obrigação; que escrever é uma necessidade, um vício; que escrever não deve ser válvula de escape ou passatempo; que escrever é estar em queda-livre, num trem sem freios; que muitas vezes me sinto como a dona de casa que cuida dos filhos, do lar, trabalha, estuda e à noite tem que estar perfumada, arrumada, depilada e disponível para um sexo rápido, sem beijos ou preliminares, para um marido que não se esforça para entendê-la e que toca mais o controle-remoto do que suas pernas.
Poderia ter dito tudo isso, mas alguém nos interrompeu.
Poderia ter dito tudo isso, mas alguém nos interrompeu.
Desmistificar o ofício (1ª lição).
ResponderExcluirUm post imprescindível. Gostei demais dessa reflexão. Abraço.
ResponderExcluircheguei a conclusão de que preciso rever meus conceitos.
ResponderExcluirtá, eu não tenho palavras pra comentar, sei que chega ser ridículo ou até mesmo clichê, mas é a verdade. não acho justo só chegar aqui e dizer: que texto lindo/profundo/ou sei lá.
sempre chega alguém na hora errada ;~
beijas neto :*
Brilhante!!! Bjo.
ResponderExcluirHerculano, muito obrigada pela sua visita! Por repousar o olhar tão comprometido, tão tumultuado de afazeres naquilo que eu agora demoro a intitular depois de ler tudo o que você escreveu sobre a escrita, o texto, o ato de escrever.
ResponderExcluirPor alguns instantes me senti irresponsável, talvez...
Mas consegui, no teu próprio texto, a minha salvação, que você deixou escapar: "que escrever é estar em queda-livre, num trem sem freios".
Assim, me jogo. Assim, assisto o caminhar dos trilhos. Se erro ou acerto, sei não, sei não... O concretizar da vontade, é a única pretensão.
Vou ter muito o que ler por aqui. É alimento. Faz crescer. Que bom!
Um abraço!
Herculano...
ResponderExcluirCompleto, incisivo, admirável... Verdade sem pretensões. A profundidade, a abrangência e a simplicidade das tuas palavras te tornaram maior ainda perante meus olhos.
Incrível como você é talentoso até em uma explicação que, em princípio, deveria ser apenas uma visita à teoria. Gostei imensamente. Algumas frases são a sinceridade que falta tanto para quem escreve para quem apenas lê.
ResponderExcluirOlá Herculano,
ResponderExcluirgostei muito do texto e como a menina fiquei atenta a cada palavra, a cada linha. Nesse universo de palavras encontro vida que me leva a imaginar. A querer construir!
abraços fraternos,
Gisele
"quem não lê não sabe escrever, e quem não vive não tem o que escrever"
ResponderExcluirFalou tudo!!
Se não temos conhecimento do funcionamento do mundo não temos como colocá-lo em um papel!
=*
Grande reflexão! E que ritmo. Cheguei ao fim quase sem fôlego. Escrever é dose! E obrigado pela visita lá no meu blog. Vou te anexar! Um abraço.
ResponderExcluirAcho que não faltou nada, Herculano, tá tudo aí.
ResponderExcluirAbraço
Definitivamente escrever nao tem manual.. é escrevendo que se aprende.. (por isso que eu pratico bastante hihi )
ResponderExcluirAh!! Oláá, gostei muuuito do seu blog
to seguiindo
fundamental e necessário. texto incrível. vale a pena passar aqui pra beber um pouco da sua dor de escrever e da inevitável beleza que daí surge.
ResponderExcluirUma das melhores coisas que já li sobre o ofício. Genial...
ResponderExcluirHerculano, em 13 de novembro de2009, escrevi um texto no meu blog e gostaria que lesse.
ResponderExcluirAcho que tem muito a ver com oque escreveu, sob um ponto de vista não muito distante, mas com uma lente diferente.
Gosto do que escreve. Muito.
Abç
Rossana
Agradeço a essa moça pela pergunta e a você pela resposta.
ResponderExcluirAinda bem que vc foi direto!
ResponderExcluirTenho a impressão de que não era isso que ela desejaria ouvir. A realidade não é tão açucarada como imagina quem está do outro lado da página. Abraço.
ResponderExcluirvim, li e gostei - queria ter escrito!
ResponderExcluirteima
líria porto
presos nas pontas dos dedos
os versos não se desprendem
fincam debaixo das unhas
são espinhos de roseira
*
besos
Um texto brilhante e preciso, meu caro. Senti-me traduzido por acreditar em tudo (ou quase tudo) que há nessas palavras. Suas concepções sobre a escrita são raras hoje em dia e, talvez, justifiquem a seriedade do teu trabalho.
ResponderExcluirUm abraço,
mR.
...
ResponderExcluirOlá, foi bom ler estas linhas.
Ajudará na minha sinapse.
Abraços
...
Muito bem dito, pegou uma reta e foi; joia.
ResponderExcluirhahahaha
ResponderExcluirNão se interrompe assim o cuspir dos ossos do ofício...
A-do-rei teu ritmo!
escrever é ponto e vírgula.
ResponderExcluirHerculano, sua resposta foi perfeita. Não há segredos.
ResponderExcluirabs
O teu nome já não me é estranho, o teu ofício, a tua face. A 'tua' Santo Amaro pitoresca. Muito prazer em conhecê-lo na entrega dos meus dias.
ResponderExcluirHerculano,
ResponderExcluirEu que vivo de vender zapatos e rabisco versos em intervalos, não de tempo, mas de pensamentos, imagino seu ofício dos dois lados do orifício da fechadura (sem porta) que é escrever e sobreviver, ou melhor, sobrescrever e viver. E só posso nos dizer sempre: mãos à obra-prima!
Com grande admiração,
Pedro Ramúcio.
escrever é um grande mistério.
ResponderExcluiré como disse Cecilia Meireles sobre a liberdade.
"que não há ninguém que explique, e ninguém q não entenda".
abs
Mãos de Poeta que escreve o poema, o alimento da alma que a deixa tão serena.No espanto de não viver suas doces palavras, ainda assim escreve e mistura-se ao vento, transformando a paisagem da montanha que era pequena...em um lindo jardim colorido...e era apenas um poema... e as mãos?... do poeta!
ResponderExcluirObrigada por sua visita em meu blog.
Beijos e Parabéns pelo texto.
Rosane Marega
Baita texto! E que primeira lição, hein, Neto?
ResponderExcluirE uma vez que você não falou, o esporro ficou no papel (ecrã).
E me sentí uma idiota.
Abraço
Se você tivesse dito tudo isso, ela ficaria imóvel e pensativa (assim como eu fiquei, quando terminei de ler).
ResponderExcluirMuito boa a sua resposta, pena que não foi dita.
não sou escritora. não me considero assim - apesar de escrever milhões de palavras por dia.
ResponderExcluire, por mais q escreva, por mais q pense q sei, por mais q possa escrever, sinto q é um exercício constante, eterno, inconcluso. algo q deve ser cultivado sempre. com todas as estações e temporadas, pra q a gente possa se descobrir - e descobrir os encantos da nossa escrita - tanto nos momentos de entressafra como nos instantes de colheita.
=)
www.princessdeluxxe.blogspot.com
Escrever é realmente labuta. Mesmo que para uns alcance o status de religião, de divindade. É algo tão particular, tão intimo, que pedir a receita de uma boa escrita é ensinar alguém a se tocar e chegar ao gozo. Belo texto!
ResponderExcluirDepois de ler este texto, agradeço mais ainda a visita ao meu espaço, e as palavras.
ResponderExcluirVocê disse belamente isso tudo o que disse.
Se você tivesse "dito"tudo isso à garota, teria sido o Rilke dela.
Foi o de quem leu.
Marie
Amei. *---*
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