quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

EPÍGRAFES

epígrafes dizem mais
não se escondem

a epígrafe é você na pena do outro
é o verso certeiro
a referência
a deferência
a bênção

epígrafes são traiçoeiras
decorativas
desnecessárias

epígrafes são maledicentes
pretensiosas
tendenciosas

epígrafes são autossuficientes
epígrafes são epitáfios

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

UM REAL

Final de tarde talvez seja o pior horário para encarar uma fila de supermercado, mas tem coisas que só uma boa garrafa de Red Label na promoção me obriga a fazer. Uma senhora está tentando pagar suas compras com uma série de moedas e notas que busca pacientemente na bolsa, já esperei tanto até agora, um pouco mais não fará diferença. Das cédulas surge, resplandecentemente esmeralda, um impecável e esquecido exemplar de um real, que chama imediatamente a atenção da operadora do caixa, que não se contem de satisfação e mostra para a colega ao lado:
 
“Fulana, olha isso aqui”

“Já é minha”

“Nada, vou ficar pra mim, a dona veio no meu caixa”

Um homem que estava atrás de mim oferece dez reais pela nota, logo o tumulto está formado. Uma mera nota de um real é disputada quase que a tapas. Sem saber quanto tempo aquele leilão iria demorar, deixo minha garrafa num carrinho abandonado e saio sem tentar me enfurecer. Acho que ainda tenho um resto de Ciroc na geladeira.

domingo, 19 de janeiro de 2014

TUDO QUE EU TENTEI FALHOU

Tudo que eu tentei falhou: 

Sapatênis, bandana, sunga dos states, suspensório, relacionamento aberto, fechado, ménage à trois, suruba psicodélica, abstinência do uso de drogas seguido da suspensão da abstinência, paraíso, purgatório, inferno, Rua Augusta, cavanhaque, bigode, moicano, dreadlock, faixinha no cabelo, sorriso faceiro, chinelo de couro, Rexona, Avanço, Leite de Rosas, Minâncora nas axilas, educação física, Educação Moral e Cívica, direito, zootecnia, papai-mamãe, coelhinho da páscoa, self-service, bandejão, rastafári, capoeira, natação, hidroginástica, relacionamento sério, encontro de adolescentes com Cristo, encontro de casais com Cristo, CVV, Caldas Novas, Guarapari, bandão, retiro espiritual, orgia, shampoo de jaborandi, florais de bach, própolis, paraquedas, bungee jump, psicanálise, macrobiótica, caminhada, jogo de bingo, roleta russa, sadomasoquismo

Tudo que eu tentei falhou.



terça-feira, 14 de janeiro de 2014

RUPESTRE MODERNO

Acho que foi José Saramago quem condenou a tendência para o uso do monossílabo como forma de comunicação virtual, o que nos levaria, gradativamente, de volta ao grunhido. Podando o pessimismo da previsão, e sem resvalar no fascínio gratuito de Caetano Veloso pela moçada que transformou “cê” em pronome, creio que estamos caminhando para o fim da linguagem escrita como conhecemos. Com o advento do WhatsApp e outros aplicativos tecnológicos, tornou-se desnecessário escrever: é demorado, cansativo, complicado, démodé. Afinal, é possível simplesmente enviar uma mensagem de voz, um simpático símbolo ou uma divertida imagem. Escrever, realmente, apenas para designar o silêncio.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

ON THE ROAD

Sei que é um momento importante, praticamente um rito de passagem, apenas por isso continuem me convidando para festas de formatura, mas, por favor, não permitam que toquem novamente “Na Estrada”, da banda Cidade Negra, aquela que diz “você não sabe o quanto eu caminhei pra chegar até aqui”. Além dela já se encontrar mais desgastada que a canção de final de ano da Rede Globo, entendo como uma afronta, uma grande mentira, se você for filho de uma família bem sucedida financeiramente, que estudou nas melhores escolas, que cresceu inocentemente entre os muros do condomínio fechado, que teve professores particulares, motorista e outra meia dúzia de serviçais diligentes ao seu dispor, que viu sua cidade da janela do carro blindado, mas caminhou alegremente pelas vias europeias e norte-americanas,  que teve uma mesada maior que boa parte dos salários pagos no país e que acredita que “faltar” é apenas um verbo. Eu não sei o quanto você caminhou para chegar até aqui, e prefiro continuar não sabendo

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

NEVE SOBRE OS CEDROS

─ Lá em casa tratamos nossa “secretária” como se fosse da família.

Não sei por que, mas alguns eufemismos soam tão estridentes aos meus ouvidos. “Secretária”, ao invés de empregada, é um deles, assim como C.A. no lugar de câncer ou “pessoa” no lugar de namorado(a).

─ Inclusive, ela come a mesma comida que a gente, viu?!

Por pura pirraça, perguntei qual era o papel higiênico que a família destinava à “secretária”.

─ Um mais normalzinho.

Nem lhe presenteei com meu olhar de reprovação, para mim uma conversa boba que nem deveria ter começado já tinha terminado, ainda assim ela treplicou:

─ Cê não queria que a gente colocasse Neve nas dependências, né?!
 
(...) 


Parece anedota, mas infelizmente tive esse papo. 
Maldita mesa de bar.


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