terça-feira, 25 de novembro de 2008

“cinema”: takes em versos singelos de um diretor-poeta


por Marcelo Lima

           O Prêmio Braskem Cultura e Arte tem bastante importância para a literatura baiana. A cada ano, existe uma contribuição significativa para as letras baianas – muitas vezes voltadas para a polêmica do vencedor escolhido.
           Em 2007 podemos afirmar que, ao menos, um dos selecionados é um grande escritor. Como prêmio, Herculano Neto teve seu “cinema”, livro de poesias, publicado em 2008.
O comentário na contracapa do livro, retirado do prefácio do poeta Miguel Carneiro, diz que encontraremos “num grande travelling a paisagem do Recôncavo e cercanias, ora em grandes planos, ora em planos fechados no rosto de seus inúmeros anônimos”. É verdade que a poesia de Herculano Neto tem um sabor de paisagem do recôncavo: em versos como “ontem teve roda de samba/e fui pro samba quebrar”(p.111) essa aproximação é evidente. Como bom poeta, ele consegue preservar esse sabor do cenário sem prejudicar a leitura de interessados que não conhecem o ambiente. Até porque, ele extrapola os cenários para imagens que atiçam a imaginação e os afetos.
            As emoções provocadas pelas poesias herculeanas dizem respeito a um sentimento voltado para um ser individual que não se confunde com um egoísta individualismo: quando trata da morte, nada mais intersubjetivo do que “aqui jaz um homem medíocre/ um medíocre/ um insignificante/ um reles contador de histórias”(p. 83). É uma subjetividade completamente contagiada de valores reconhecíveis: angústia da morte, nostalgia da infância, os sonhos do amor romântico.
           Os títulos do poema e a estruturação do livro fazem referência à arte, ao produto cinematográfico e ao mercado que o envolve.
            Temos poesias entituladas “sala de arte”, “sinopse” e “isabela boscov não viu o meu documentário”, que funcionam como uma sugestão de sentido para a interpretação dos textos. Sabendo-se que Boscov é crítica de cinema da Revista Veja, podemos indagar o que Herculano tenta transmitir em “o reflexo tosco/ me diz sem escrúpulos/ que tenho prazo de validade/ e hora marcada para ser feliz”(p.55). Uma ironia com a crítica? Uma dedada na ferida de Boscov? Ou quem sabe um genuíno medo da desintegração inexorável a qual nós humanos seremos submetidos?
            Dividido em três partes: filmografia, curta-metragem e matinês. Essas partes, a meu ver, dialogam entre si como se não precisassem ser particionadas. No entanto, usar os três nomes aqui tem um efeito estético que se abre, novamente, a interpretações: são três substantivos distintos e fortes, que pela não-explicação e pelo remetimento aos títulos do livro e das poesias acabam por conformar uma procura por significação. Estive à procura dessa ligação e até o momento não consegui isolá-la de forma a atender todos os elementos contidos em cada uma. Poderia considerar arbitrário, mas o livro consegue ser tão coerente em sua unicidade que nada parece estar ao acaso.
           Os versos predominantemente livres de Herculano não dispensam o ritmo. Podemos notar uma cadência fluída por todos os textos, a exemplo do que vemos na poesia “o cantor de jazz”:

canto
por sina
desencargo de consciência
ócio
crença

canto
pelo aplauso
mesmo o mais automático
pela migalha
pelo bravíssimo

canto choro grito
me multiplico
me dispo
me confundo

canto
sozinho
pra ninguém
pra lua

canto
canto
canto

não há canção sem dor
(p.45)


            Não somente pela referência musical no título, mas pela própria oralidade e versos curtos, notamos a preocupação de fazer a poesia se manifestar numa correnteza forte e líquida ao mesmo tempo. Essa característica está presente em todas as poesias.
            Posso concluir, então, que o verso forte de Herculano nos convoca a visualizar sua poesia, como se fosse uma cena. Cena atrás de cena, amarrando profusões de imagens que se interligam numa não-narrativa que ainda assim faz algum sentido narrativo. Em seu fazer, mesmo evidenciando imagens humanas, Herculano tem o mérito de não mostrar a imagem óbvia e zelar pela capacidade imaginativa de seu leitor. Ele não espera uma passividade espectadora e sim uma emoção-resposta que jogue com sua poesia, com seu álbum de formas visuais e sonoras.
             Compre o livro, acomode-se bem em uma poltrona, mas não espere que imagens sejam projetadas numa telona, pois o projetor dessa obra é o próprio leitor.
 
RESENHA ORIGINALMENTE PUBLICADA NA VERBO 21:

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