domingo, 26 de agosto de 2012

DRIVE

    Veio numa caixa não muito maior que os volumes de enciclopédia enfileirados em prateleira na sala de visitas atrás das estátuas de anjos e peixes. Como uma coisa daquelas poderia caber ali? Uma mesa? Uma mesa de canto, dizia o anúncio, confeccionada por um dos mais premiados designers norte-americanos. Requer montagem.
     Chegou ao meio-dia. A mãe ficou muito empolgada. “Vamos esperar para abri-la depois do almoço”, disse ela.
    Ela pedira a mesa pelo correio. Ele se lembrava de ter ficado impressionado com isso. Será que o carteiro tocaria a campainha e, quando a mãe abrisse a porta, ele estaria ali com a mesa nas mãos? “Sua mesa”, madame. Você faz um círculo, escreve um número num pedaço de papel, anexa um cheque e pronto! Uma mesa aparece na sua porta. Tudo isso já é mágico o bastante. Mas ela também vem numa caixinha de nada dessas?
    Memórias mais antigas de sua mãe quando ele era criança afloravam ocasionalmente nas horas que antecediam o amanhecer. Ele acordava com as memórias alojadas na mente, embora, nos momentos em que tentava se lembrar delas de maneira consciente, ou expressá-las, elas desaparecessem.
     Ele tinha o quê? Nove, dez anos? Sentado à mesa da cozinha, ele devorava um sanduíche enquanto a mãe tamborilava os dedos na bancada.
     “Terminou?”, ela perguntou.
     Ele não terminara, ainda tinha metade do sanduíche no prato e estava faminto, mas assentiu. Sempre concordar. Essa era a primeira regra.
     “Então vamos dar uma olhada”. Ela golpeou com um cutelo numa das extremidades da caixa para abri-la.
     Foi colocando as peças no chão com todo o carinho. Que quebra-cabeças impossível! Pedaços de metal barato contorcido e tubos, chavetas e saquinhos com parafusos e outras peças.
     Os olhos da mãe retornavam à folha de instruções e, passo a passo, peça a peça, ela montou a mesa. No momento em que as tarraxas dos pés foram encaixadas e as metades inferiores das pernas foram colocadas no lugar, a expressão no rosto da mãe, a qual ele estava ainda mais atento, passou de feliz a intrigada. Enquanto ela unia as partes superiores das pernas, os apoios de sustentação e os parafusos, a expressão se tornava triste. Aquele prospecto de tristeza se espalhava por todo o seu corpo, tomava conta da sala.
     Preste bastante atenção: esta é a segunda regra.
     A mãe ergueu o tampo da mesa do fundo da caixa e ajustou-o no lugar.
     Uma coisa horrorosa, de aparência barata, instável.
     A sala e o mundo ficaram muito quietos. Ambos silenciaram por um longo tempo.
     “Eu simplesmente não entendo”, a mãe disse.
     Ela se sentou no chão, imóvel, alicates e chaves de fenda espalhados a seu redor. Lágrimas jorravam de seu rosto.
     “Parecia tão lindo no catálogo. Tão lindo. Bem diferente dessa coisa”.



Não costumo postar nada que eu não tenha escrito, aliás isso faz parte DAS COISAS QUE EU ODEIO EM BLOGUES, mas após reler algumas vezes o capítulo vinte e cinco (texto acima) do irregular best-seller de James Sallis, que deu origem ao filme homônimo estrelado por Ryan Gosling, não resisti, talvez porque seja o melhor momento do livro, talvez porque a estrutura se assemelhe a um conto, talvez porque eu tenha me identificado com a prosaica lembrança da infância, talvez porque eu tenha ficado com inveja.

25 comentários:

  1. Desculpe-me, Herculano, mas foi inveja. O texto é muito bem escrito, já me prendeu na segunda linha.

    Abraços.

    PAZ e LUZ

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  2. Você não é o primeiro a passar por esse conflito...rss

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  3. Ryan Gosling, o homem mais lindo do cinema.
    Pelo trecho, o livro parece ser mais interessante
    que o filme, realmente lembra um conto.

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  4. talvez porque seja apenas uma escolha,


    a
    braço

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  5. Que bom que você transgrediu suas próprias regras e dividiu uma passagem bonita como essa...

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  6. Se o filme tivesse uma sequencia
    tao bacana quanto a descrita acima,
    talvez ele não fosse tao decepcionante.

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  7. Gostei desse capítulo vinte e cinco sobretudo pelas lágrimas derramadas. Pelas razões das lágrimas derramadas.Choro de desilusão. Nos catálagos depositamos tanta esperança. Regra número um: nunca acreditar em catálogos; nem nas vitrines que ostentam o melhor, quando o melhor já está todo à mostra, por dentro não há nada que valha a pena. Essas são lágrimas do auto-engano. E lágrimas inocentes. Essas lágrimas que a gente desaprende. Chorar assim tem uma beleza. Desaprendi a chorar assim.

    Beijos, Herculano

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  8. Caro Herculano, não costumo comprar nada pela net, mas das histórias que se fica sabendo, acho a reação da "mãe" se iguala atodos que acreditaram no catálogo...mas o que mais gostei foi tua explicação da escolha de tal capítulo, que realmente parece um conto, contos aliás que tou enlouquecido escrevendo, escrevendo...
    Meu carinho meu respeito meu grande abraço.

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  9. Eventualmente é muito bom praticar o que odiamos!

    Eu adorei ler só esse trecho, assim pescado. Valeu!

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  10. Que belo texto! Parabéns pelo bom gosto!

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  11. Oie...
    Tudo bom?
    Amei o texto (tudo bem que não foi seu...) mas realmente valeu a pena compartilha-lo...

    Adorei seu blog... Já estou seguindo...
    Depois dá uma passadinha no meu para conhecer e se puder segui-lo ficarei muito grata... Relíquias da Lylu =D
    http://reliquiasdalylu.blogspot.com.br

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  12. Que coisa, Herculano. Esse texto me fez pensar que se eu quisesse pedir alguma coisa estapafúrdia pela internet, não poderia contar com a cena de frustração, pois o CEP seria inválido. O fato do texto ter sido extraído de um livro que se transformou em filme, me lembrou de mais dois típicos problemas de fim de mundo: aqui não existe biblioteca e faz tempo que não leio um bom livro; tampouco há uma boa locadora, ou seja...

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  13. Realmente, esse livro é sensacional e essa parte ganha de todas.

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  14. Tudo em catálogo é bonito. Mas no real.
    Isso me faz pensar nas pessoas sabe... embalagens tão lindas, mas depois de olhar apenas duas peças CORAÇÃO E CEREBRO. Da vontade de sentar e dizer:

    “Parecia tão lindo no catálogo. Tão lindo. Bem diferente dessa coisa”.

    Bjos

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  15. Às vezes as aparências - iludem e desiludem... bela escolha, Herculano :) Um beijinho!

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  16. Valeu mesmo postar, muito bom o texto, e isso já aconteceu várias, e várias vezes conosco, quando compramos algo pela internet, quando comprei meu celular, na primeira vez veio a caixa cheia de baterias de celulares.. =/

    Sorte!

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  17. Parece mesmo um conto.
    O livro é realmente bom, ou apenas essa parte que salva a história?
    bruna-morgan.blogspot.com

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  18. "talvez porque eu tenha me identificado com a prosaica lembrança da infância" - certamente eu me lembrei de algo da minha infância quando li isso... =)

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  19. Acho que um blog fica mais interessante com um conteúdo criado pelo autor, mas colocar um texto ótimo como esse de vez em quando é dividir algo interessante que se encontrou por aí com outras pessoas, e isso é legal. Um abraço!

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  20. Acho que foi um mix de tudo isso que você citou que te levou a postar esse texto.

    Mesas de catálogo, perfume de catálogo... E me ocorreu agora um pensamento acerca de gente de catálogo. Aquele negócio chamado photoshop vende muito por catálogo.

    Tudo "bem diferente dessa coisa".

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  21. Não li o livro que originou o filme "Drive", mas adoro a adptação cinematográfica, que considero um dos melhores trabalhos do ano vistos no cinema. Li o trecho postado aqui e, confesso: fiquei interessada no livro. :)

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  22. Herculano, não foi esse o capítulo que eu tb gostei? Agora não lembro... No exemplar que dei a vc tem uma anotação minha, mas não lembro se foi nesse capítulo e, portanto, não sei se gostamos do mesmo capítulo... Mesmo relendo, agora, não consigo lembrar...
    Abç!

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  23. Ficou com inveja?? Que coisa feia...rs

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  24. Que belo texto Herculano

    Acontece muito em vitrines de lojas. Vejo uma linda blusa e entro para comprar, logo a decepção.Já comprei cosméticos pela internet me senti como essa mãe montando a sua mesa.

    Um bom domingo
    Beijos.

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