sábado, 31 de julho de 2010

ESPELHOS DE LUZ E SOMBRA

     Costumo dizer, aos meus amigos fotógrafos (profissionais, semi-profissionais ou de final de semana), que fotografar é fazer poesia sem papel e caneta. A francesa Irina Ionesco, uma das grandes damas da fotografia mundial, diz que a fotografia é “um elemento essencialmente poético”. Mas isso só descobri agora, após visitar sua exposição, ESPELHOS DE LUZ E SOMBRA, com trinta trabalhos assinados, analógicos e em p&b, feitos entre 1968 e 2006, sem nenhuma interferência digital, que está percorrendo o país.
      Irina Ionesco nasceu em 1935, em Paris. Ainda adolescente iniciou sua trajetória de mulher-espetáculo: encantadora de serpentes, alvo vivo de um arremessador de facas, dançarina acrobática e contorcionista. Chegou à fotografia depois que um acidente a impossibilitou de continuar dançando. Realizou sua primeira exposição como fotógrafa em 1970, desenvolvendo uma das obras mais singulares da arte contemporânea, presente em importantes galerias de todo o mundo, além de ilustrar ensaios de moda. Seu universo barroco, onírico, nos transporta para um ambiente teatral, cinematográfico, onde a idealização de uma mulher mítica é quase sempre o centro.
      Quando saí da exposição, e me deparei com o colorido cinza do centro da cidade, com sua gente cheia de pressa e medo, a vontade era que tudo fosse estático, insólito e em preto & branco; ao menos no meu caminho. Foi quando uma senhora, tentando abrir seu guarda-sol, se esbarrou em mim, e nem pediu desculpas.
JOCELYNE, 1974
EVA AUX ROSES, 1975
FEMME VOLANTE, 1988

quinta-feira, 29 de julho de 2010

DIÁLOGOS NA MADRUGADA


Veja dois microcontos inéditos nos blogs do dançarino e artista plástico Edu O., MONÓLOGOS NA MADRUGADA e O CORPO PERTURBADOR, a partir das observações que faço do centro da cidade. São dois pontos de vista da mesma história, tendo como fio condutor os devotees (que são homens e mulheres que sentem atração por deficientes físicos).

segunda-feira, 26 de julho de 2010

MEMBRO FANTASMA


Finalmente, tive alta do hospital. Segundo os médicos, a operação para a mudança de sexo foi um sucesso. Continuo com muitos inchaços e dores, a sensação não é das melhores, no entanto o alívio de ter me livrado daquele incômodo é muito maior. Os psicólogos me disseram que é natural que, ao ter algum membro amputado, tenha-se a impressão de que ele ainda exista. Mas não comigo: eu sempre mijei sentada.


Em breve: este e outros microcontos reunidos em um livro

quinta-feira, 22 de julho de 2010

DA LAPA A ITAPUÃ: LOST, SARAMAGO, VAMPIROS E NOVELA

Hoje pela manhã, um jovem casal discutia a relação dentro do ônibus. Por algum motivo que não sei precisar, um disse para o outro uma expressão popular que eu não escutava há anos: “Pare de me acompanhar que eu não sou novela”. Foi quando, percebi que quem acompanhava a discussão, como se fosse uma genuína telenovela, era eu. Não vejo novelas: considero-as chatas, previsíveis, repetitivas, canhestras. Além do que, dois capítulos equivalem à duração média de um longa-metragem — mesmo eu já tendo me convencido de que morrerei sem assistir a todos os filmes que eu gostaria, não posso me permitir esse luxo. Até já tentei acompanhar algumas séries que aparentavam ser interessantes, mas acabei desistindo antes do meio do caminho. Minha última tentativa foi com LOST: nunca fui um grande entusiasta das desventuras de Dr. Jack, Locke, Kate e Cia (a camisa pólo da Iniciativa DHARMA que ganhei no Natal, e que só usei uma vez para não “fazer desfeita”, não me contradiz), apenas queria saber como terminaria. Talvez por não ter expectativas, seu final não tenha me decepcionado.
O casal parou de brigar, agora quem dava as cartas era um silêncio constrangedor. Ainda assim, resolvi mudar de assento, dá play no meu genérico de iPod e folhear sem muita atenção uma revista semanal da semana passada (sempre leio esse tipo de revista de trás para frente, feito um mangá, apenas para apreciar as notícias culturais antes de qualquer outra página — embora, muitas vezes nem valha a pena). Enquanto soava os acordes iniciais de “Acabou Chorare”, li que a Playboy rescindiu o contrato de sua versão portuguesa, que durou pouco mais de um ano, por estampar em sua última capa a representação de Jesus Cristo com uma mulher seminua na cama. A intenção era homenagear José Saramago e criar polêmica, mas não conseguiu nem uma coisa nem outra. Juntamente com uma entrevista do escritor, foram publicadas outras fotografias, que fazem referência ao Evangelho Segundo Jesus Cristo. No entanto, Cristo é a última pessoa que alguém quer encontrar no pôster central da Playboy. Virando a página, descobri que Hollywood pretende refilmar o sueco DEIXE ELA ENTRAR, um dos melhores filmes de terror que já vi — que traz vampiros adolescentes, mas não se pode comparar com nenhuma tendência juvenil. Refilmagem de clássicos, de sucessos asiáticos e europeus, adaptação de séries televisivas; não é somente crise criativa que assola os grandes estúdios, é falta de talento. Nem preciso dizer que passarei longe desse pastiche, como passarei ainda mais longe do super bebê vampiro que deve chegar por aí. Ainda tive tempo para ler que as novelas brasileiras também fazem suas refilmagens, e lembrei que a mais recente assisti quando eu era criança (pois é, um dia acompanhei novelas).
Levantei-me ao perceber a proximidade do meu ponto. Quase duas horas dentro de um ônibus e nem uma em Itapuã (quem me dera, uma tarde). Antes de sair, vi o casal se beijando apaixonadamente. Pelo jeito, o final foi feliz — por enquanto.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

CASA DE BONECAS (VERSÃO MICRO)



Após a quimioterapia, não havia quem conseguisse comunicar à Cecília que seu braço seria amputado. Indiferente àquele dilema, Cecília brincava no quarto com suas bonecas: todas carecas e com os braços cortados.

 
Em breve: este e outros microcontos reunidos em um livro

segunda-feira, 12 de julho de 2010

CURTA-METRAGEM


curta-metragem*
Herculano Neto

foi tão breve o amor
o tempo de queimar o cigarro
de pedir outra dose
de esvaziar os armários
de mudar de canal
de mudar de ideia

foi tão breve o amor


*Poema integrante do livro CINEMA (Prêmio Braskem Cultura e Arte, 2007)
Imagem: Carey Mulligan em An Education (Direção Lone Scherfig, 2009)

quarta-feira, 7 de julho de 2010

PARA CAZUZA

Cara, um amor tranquilo é mesmo uma questão de sorte. Eu já me rendi à inquietude das bocas, das nucas e das mãos que me acolhem pelas madrugadas, de bar em bar, que nem espero mais. O amor, hoje, para mim, pode ter qualquer sabor. Os poucos trocados que trago nos bolsos não me dão nenhuma garantia, apenas prolongam a noite. Enquanto a manhã não chega, enquanto o mundo não acorda, costumo saciar minha sede com uísque e saliva. Sempre estou a fim de mais uma dose e nunca recuso remédios que me deixam alegre, principalmente para tentar escapar dessa monotonia infernal, desse tédio monocórdico. Sem dramas; você sabe que mal eu só posso causar a mim. Recentemente, reencontrei Clarice e percebi que continuo áspero e desesperançado. Até pensei em escrever novos poemas, porém só escrevo sobre aquilo que posso viver e, ultimamente, não tenho vivido minha poesia. Quem sabe, se eu te alcançasse em cheio seria possível, mas há algo escondido entre os versos que eu não consigo decifrar. Acho que a poesia acontece antes de chegar ao papel. Outro dia, lembrei de algo que você me disse sobre solidão a dois, sei que não passo de uma pessoa carente, que necessito de atenção, mas não quero ser a comida nem a migalha dormida do pão de ninguém, cansei de raspas e restos. Também, não quero ter todo amor que houver nessa vida: ter todo amor que puder nessa noite já seria suficiente.
Sem boas novas eu ainda ando por aí.


Hneto, Julho/2010

Carta baseada na canção
TODO AMOR QUE HOUVER NESSA VIDA
(Frejat/ Cazuza)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

LARANJA

Laranja é uma cor que tem o nome emprestado da fruta, talvez ela não tenha um nome apenas seu porque não passa de um amarelo com tons avermelhados. Pra piorar, no Brasil laranja é quem tem o nome envolvido em transações ilegais em benefício de terceiros (e amarelar é sinônimo de acovardar-se, mas o amarelo não me interessa). Não costumo teorizar sobre futebol, principalmente para não cair nos jargões futebolísticos que pululam na imprensa. Também não gosto de conversar a respeito, pois torço por um time que se tornou pequeno e nunca tenho razão. Só que, recentemente, não me contive e falei para alguns amigos que preferia perder com Telê Santana a vencer com Dunga. Obviamente, fui execrado: entre outras coisas, me disseram que perder jogando bonito não deixa de ser uma derrota, que a história é feita pelos vitoriosos e que o treinador é bastante coerente. Não contestei. Cansei de ouvir a palavra coerência, acho que não a direi durante muito tempo. Coerência é característica de pessoas conservadoras – e o futebol não pode se opor ao novo. Quero ganhar jogando bem, sempre: sou amante do futebol romântico (pra não dizer que não usei nenhum jargão). E nem quero saber que história contará os derrotados. Dentro de algumas horas, irei jantar. Pedirei um suco de laranja, mas espero que o garçom não me interprete mal.


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